Cortesia
de wikipedia e jdact
As
Cruzadas
«(…) Sigrid olhava fixa e exaustivamente, de olhos arregalados,
para o lugar onde acontecia o milagre, e escutava com todo o seu ser, com todo
o seu corpo, de tal maneira que entrou em transe, estremecendo de tensão, e
então ficou tudo escuro diante dos seus olhos e ela não mais podia ver, apenas
escutar, como se os ouvidos tirassem dos olhos a potência toda para só escutar.
Era como se ela tivesse desaparecido, como se tivesse se transformado em sons e
em parte de toda a música sagrada, mais bonita do que qualquer outra melodia
apresentada nesta vida. Um momento depois, ela voltou aos seus sentidos normais
pelo facto de algo ter tocado sua mão, e quando levantou os olhos descobriu que
era o próprio rei Sverker.
Este dava umas pancadinhas delicadas na sua mão e agradecia
a ela, ironicamente, porque ele, de facto, era bem idoso, e bem precisado
estava que uma mulher em estado interessante se antecipasse a ele e se
sentasse. Se uma mulher abençoada podia sentar-se, também o rei podia, queria
ele dizer. Mas, se a ordem dos acontecimentos fosse inversa, isso, claro, já
não iria parecer tão bem. Sigrid conteve decididamente a intenção de contar
aquilo que o Espírito Santo lhe tinha acabado de falar. É que, pensou, se
contasse a história, poderia parecer que ela estava fazendo de importante. Os
reis passam o tempo todo ouvindo essas coisas, até que alguém corta a cabeça
deles. Em vez disso, ela contou-lhe em voz baixa e de maneira rápida a
conclusão a que tinha chegado. Era a respeito, como certamente o rei já sabia,
da controvérsia relativa à sua herança de Varnhem. A sua parente Kristina, que
acabara de se casar com um tal Erik Jedvardsson, um homem ambicioso, reclamara
metade da propriedade. Mas acontece que os monges em Lurõ precisavam de um
lugar com invernos menos rigorosos. Uma grande parte do que plantavam acabava
se perdendo, isso todos sabiam. E não fizera nenhum mal à grande generosidade
do rei Sverker ter oferecido Lurõ aos monges. E se ela, Sigrid, desse agora
Varnhem para os cistercienses, o rei precisaria abençoar a dádiva e declará-la
legalizada e, então, todo o problema estaria resolvido. Todos iriam ganhar com
a solução. Ela havia falado rápido e em voz baixa
e ficou ofegante, o coração continuando a bater forte, tal como no momento em
que escutava a música celestial e a escuridão se transformou em luz. O rei, primeiro,
pareceu ficar surpreso. Ele mal estava acostumado a que os homens à sua volta
falassem com ele directo e sem os cerimoniosos rodeios habituais. Muito menos
as mulheres. É uma mulher abençoada em muitos aspectos, minha cara Sigrid,
disse ele, finalmente, com palavras lentas e pegando de novo a mão dela. Amanhã,
quando já tivermos dormido no castelo depois do banquete de hoje, irei chamar o
padre Henri e aí vamos resolver toda essa história. Amanhã, mas não hoje.
Também não ficará bem continuarmos aqui nós dois, sentados durante muito mais
tempo a sussurrar. De um momento para o outro, ela tinha feito a dádiva da sua
herança, Varnhem. Nenhum homem, nenhuma mulher, poderia quebrar a sua palavra
diante do próprio rei, assim como o rei jamais poderia quebrar a sua palavra.
Aquilo que ela fizera ninguém jamais poderia desfazer. Mas foi também uma
atitude prática, entendeu ela, quando se recuperou um pouco. O Espírito Santo
podia, portanto, ser prático, e os caminhos do Senhor nem sempre eram tortuosos.
estava situada perto de Skara, não muito longe da
residência do bispo, no sopé da montanha Billingen. Arnäs situava-se na margem
leste do lago Vànern, onde o condado de Sunnanskog terminava e começava o de
Tiveden, no sopé da montanha Kinnekulle. A propriedade de Varnhem era mais nova
e estava em muito melhor estado, e era por isso que Sigrid queria passar lá o
tempo mais frio, em especial quando as terríveis dores do parto estivessem para
chegar. Magnus, seu marido, gostaria que eles escolhessem a propriedade de
Arnäs, herdada de seus pais, para viver. Ela preferia Varnhem e os dois nunca
conseguiram chegar a um consenso. Por vezes, não conseguiam nem falar do
problema com a calma e a paciência que deviam existir entre marido e mulher.
Arnäs precisava ser reequipada e reconstruída. Mas estava localizada numa
área-limite, ao longo da floresta, sem donos, onde havia muitos terrenos livres
e outros pertencentes ao rei, com possibilidades de negociação ou compra. Nessa
propriedade muita coisa poderia ser mudada para melhor, em especial se os servos
e ferramentas fossem transferidos de Varnhem.
Não foi exactamente assim que o Espírito Santo se expressou sobre o assunto quando fez Sua aparição
perante ela. Sigrid teve uma visão que não estava bem clara, uma manada de
cavalos muito bonitos que brilhavam em cores que lembravam a madrepérola. Os
cavalos haviam chegado, correndo na sua direção, perto de uma lagoinha com
muitas flores, as crinas eram brancas e sedosas, as caudas desdenhosamente
levantadas, e eles se movimentavam alegremente, ágeis como gatos. Era um prazer
vê-los em todos os seus movimentos. Não eram cavalos selvagens nem cavalos sem
dono, já que pertenciam a ela. E em algum lugar por trás dos cavalos
brincalhões, traquinas e sem selas, veio um jovem cavalgando num cavalo
prateado, também com a crina branca e cauda majestosamente levantada. Ela
conhecia esse homem jovem, mas ao mesmo tempo não o conhecia. Ele portava escudo,
mas não usava elmo. A marca do escudo, ela não pôde reconhecer como sendo de
qualquer dos seus parentes ou de parentes do seu marido. O escudo era
totalmente branco, com uma grande cruz de sangue, nada mais». In Jan Guillou,
A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Editora Bertrand Brasil, Grupo Editorial
Record, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.
Cortesia
de EBertrandB/JDACT