«(…) Gostámos da cabana. Não sei quem mais de nós dois, mas, de
qualquer forma, o teu entusiasmo pareceu maior do que o meu, e não pelo que ias
cobrar de comissão, uns dez por cento sobre a renda, mas sim pela verdadeira
vontade que tinhas e ocultavas de passar ali uns dias, de ver como o Outono se
metia no tempo, se apoderava uma a uma das folhas do bosque: notava-se-te nos
olhos, no ágil gesto das mãos, sobretudo na voz, quando elogiavas as virtudes e
méritos da ilha e do refúgio, lugar para o amor também, não só para o estudo e
para o recolhimento. Foram uns minutos em que, se Claire ali se encontrasse,
teria sorrido um pouco com aquele seu sorriso de anglo-saxão prepotente perante
os povos inferiores, e no caso de ir mais além do sorriso, que já basta por si
próprio para uma pessoa se sentir incomodada, ter-te-ia censurado como a uma
meridional incorrigível o movimento e a expressividade, precisamente o que eu
elogio em ti, a voz que sobe e se quebra, e o que dizem as tuas mãos quando a língua
se recreia. Estava entusiasmado a contemplar-te, sentara-me num dos cadeirões e
via-te ir e vir, abrir portas e armários, parar junto à lareira, descrever-me a
chama estremecida da lareira nas noites escuras, e a luz das velas trémulas se
quisesse acendê-las, criando nas esquinas as sombras do mistério do medo, o
levei tempo a aperceber-me do teu desejo; quando o compreendi, apressei-me a
convidar-te: por que é que não vens também e me acompanhas durante todo esse
tempo? E apontava com o dedo estendido o camarote do pirata, aquele de que eu
gostara para mim e agora ocupas, essa cela encantadora para refúgio de um
intelectual cansado. Perguntaste-me se estava a oferecer-te a sério; respondi-te
que sim, e ficaste pensativa durante um bom bocado, até que me disseste: era preciso
ir e vir para a universidade todos os dias. Sim, e depois? Também não vais da
tua casa? Foi muito curioso, um pouco incoerente, pelo menos segundo o meu modo
racional de ajuizar: não respondeste nem que sim nem que não. Disseste:
apetece-me tomar banho. Peço-te que não olhes: não quero que me vejas nua. E sem
que eu concordasse, sem que sequer protestasse contra a tentação, saíste, e uns
minutos depois, traidor como sou, gente de pouco fiar, vi-te bracejando lenta
pelas águas do lago, sair mais tarde e esconderes-te depressa, talvez no
interior da cabana. Gostei então do teu corpo, magro e moreno, não rosado como
o das vikings, mas sim de pele como a pátina das teclas de um piano velho. E
lembrei-me enquanto o contemplava daquele poema egípcio que Claire nunca te
recitou, porque provavelmente não figura na sua limitada antologia: é tão
bonito atirar-me para dentro do tanque e ali banhar-me à tua frente! Vê como
estou bela, como a minha túnica molhada molda o meu corpo! Mergulho ao pé de
ti, e, ao emergir, aproximo-me de ti e levo preso nos caracóis um peixinho vermelho.
Aproxima-te e revista-me! Regressaste ao salão enxugando o cabelo. A água
estava um pouco frio, e pediste-me whisky, se eu tivesse: dei-to do meu frasco
de prata, aquele que Tatiana me ofereceu quando foi aprovada summa cum laude
a tese que eu tinha orientado. Perguntaste-me uma vez, ainda éramos amigos há
pouco tempo, se Tatiana tinha sido minha amante; desatei a rir: Tatiana é uma
rapariga sensata; acredita no casamento e vai casar-se com um químico qualquer
que resgatou da droga. O frasquinho de prata para whisky que me deixou como
recordação recebera-o do pai, oficial do exército do czar, acabado de sair da
escola quando se deu aquilo da revolução. Tatiana é o fruto tardio do casamento
entre o tenente emigrado e uma menina colombiana encontrada numa catástrofe qualquer:
falava o espanhol, Tatiana, ondulante e doce da sua mãe, o mais bonito que alguma
vez ouvi. Não. Nunca foi minha amante.
Nunca te disse que o teu corpo, visto despido mais algumas vezes, todas
as que tomaste banho no lago, não é um corpo de mãe, nem sequer de esposa: eu
destiná-lo-ia a outro tipo de amor feito de tempestade e tormenta. Vendo-o pela
cortina entreaberta, iluminava-o um bocadinho o sol poente, era terrível e seco
como um relâmpago; compreendi então porque é que agrada a Claire, e um dia
dir-te-ei as razões, embora ainda não perceba porque é que me agrada a mim, e temo
que nunca o possa explicar satisfatoriamente, nem sequer nas páginas deste
caderno, onde posso escrever tudo, onde desejaria fazê-lo». In
Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino,
1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas,
Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT