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A casinha do bosque
«(…) Voltando a Canuto, o relatório de urn diplomata sagaz assegura que
lhe falta personalidade num grau verdadeiramente incalculável. O diplomata era
inglês, de boa casta e melhor educação, e a sua leitura afirma-o como
humorista. O rei Canuto, afirma, é uma curiosa entidade abstracta
perante a qual podem surgir graves dúvidas existenciais. Quando o visitante se
aproxima dele no Grande Salão de retratos onde recebe as embaixadas, tem a
impressão de que o Rei se desvanece como pessoa viva, e que, ao contemplá-lo,
sofre de uma alucinação persistente. A figura do rei Canuto carece de qualquer
elemento próprio. As suas costas curvam-se como as do rei Roberto. Os seus
olhos são os olhos da rainha Carolina. As mãos recebeu-as sem dúvida do avô matemo.
o imperador da Alemanha, e no corte do nariz parece-se com Ladislao, o Fero.
A boca e o sorriso podem ver-se no retrato de Frederico IV, e todos,
absolutamente todos, os restantes elementos da sua figura e do seu carácter
podem ser identificados nos grandes retratos que pendem das paredes, até os mais
antigos, incluindo Boris, o Magnífico, fundador da dinastia. E quando o
visitante domina a ilusão de se encontrar diante de um fantasma, cai
inevitavelmente na convicção de estar a falar com um homem feito de retalhos.
Não duvido de que aconteceria o mesmo a qualquer um, se dispusesse de boas efígies
dos seus antepassados com as quais pudesse comparar-se; mas nós, os restantes
homens, mal conhecemos os nossos bisavós, e chegamos a julgar-nos possuidores
de uma personalidade original e própria. Se uma velha amiga nos acusa de
parecença com qualquer tio carnal defunto, achamo-la esúpida e visionária. O rei
Canuto, pelo contrârio, considera-se um resumo lastimável dos seus antepassados,
e talvez alimente o receio de que qualquer dia cada um deles reclame a parte
que lhe cabe e de Canuto não fique mais que a recordação, uma recordaçâo tão
vaga que quase se pode temer que não exista.
Contudo, o investigador discreto sabe ser cauteloso perante estes
relatórios. Se se estuda Canuto sem preconceitos, se se convive com ele, pode
chegar-se a conclusões um tanto diferentes, embora igualmente pouco
satisfatórias. É indubitável que a sua educação o impediu de formar uma
personalidacle no sentido da escola americana, e em vez disso contribuiu para a
criação de vários complexos no sentido da escola vienense. Como nasceu enfezado,
convenceram-no da necessidade de ser atleta e, mais do que isso, de que os seus
súbditos só o respeitariam pelos ombros largos e os bicípites poderosos; e Canuto
tomou o ténis, a natação e a ginástica como um dever, embora contrário à sua
tendência romântica para vaguear pelos jardins, ler romances e deleitar-se na
contemplação das brumas matinais. Quando chegou à idade apropriada, informaram-no
de que os actos reais carecem de validade se não forem referendados por um
Ministro responsável, e, ao mesmo tempo, de que esses actos devem estar de
acordo com a opinião maioritária, não ser hostis à oposição e ser bem acolhidos
pela Imprensa. Mas quando Canuto fazia qualquer coisa em que essas condições
coincidissem, os seus camareiros, os seus professores, os senhores generais e
cortesãos, o tutor e o ajudante de cãmara mostravam-se discordantes; e não
sabendo encontrar o ponto médio entre tanta desavença, decidiu nunca actuar,
mas deixar-se empurrar para a acção pela máquina privada palaciana e pela
pública máquina política, eliminando assim a tradicional contenda entre uma e outra.
Foi, sem dúvida, o seu acto mais inteligente, mas há muitos que duvidam em
atribuir-lhe a responsabilidade, atribuindo o feito a Gisela-Lillo-Inês.
Ai, Gisela-Lillo-Inés! Esta sim, é uma boa história. Tinha Canuto uns
quinze anos, e em certa ocasião cometeu o erro de galantear uma certa
rapariguinha da aristocracia, a condessa Waldoska, mais ou menos da sua idade.
Foi numa noite de festa, no jardim, à beira do rio, com perfume de flores e
luar. Canuto pensou que aquele galanteio era um acto verdadeiramente pessoal, e
levou o seu entusiasmo até ao abraço e à carícia. Aqueles que quiseram
desculpá-lo, que foram poucos, interpretaram-no como o resultado de um instinto
adolescente despertado pelo efeito combinado da festa, da noite, do perfume e
da Lua que actuaram energicamente sobre o seu grande-simpático». In
Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial
Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.
Cortesia de Caminho/JDACT