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«(…) No entanto, apostaria sem hesitação que eram Rosália, o
marido e a filha que iam ao cinema. Conhecia isso pelo modo de rir aria
Cláudia, qde Mue era louca por cinema. Cinema... Há quanto tempo não ia Justina
ao cinema? Sim, a morte da filha... Mas, já antes disso, há quanto tempo não ia
ao cinema? Matilde ia com o pai, mas ela ficava sempre em casa. Porquê? Sabia
lá!... Não ia. Não gostava de andar na rua com o marido. Era muito alta e muito
magra, e ele gordo e atarracado. No dia do casamento, os garotos da rua
riram-se ao vê-la sair da igreja. Nunca esquecera esse riso, como não podia
esquecer aquela fotografia, com os padrinhos e os convidados dispostos nos
degraus da igreja como espectadores de peão em campo de futebol. Ela, hirta,
com o ramo de flores pendurado, os olhos negros embaciados de perplexidade; e
ele, já gordo, comprimido na sobrecasaca e com o chapéu alto emprestado.
Enterrara essa fotografia ridícula no fundo duma gaveta e nunca mais a quisera
ver. O diálogo do relógio e do silêncio foi interrompido outra vez. Da rua veio o rolar surdo de
rodas de borracha sobre o pavimento irregular. O automóvel parou. Houve uma
confusão de ruídos na noite: a mola do travão de mão, o som característico da
porta ao abrir-se, a pancada seca ao fechar, um tilintar de chaves. Justina não
precisou de levantar-se para saber quem chegava. Dona Lídia recebia uma visita,
a sua visita, o homem que a vinha ver três vezes por semana. Lá pelas duas da
madrugada, o visitante sairia. Nunca passava a noite ali. Era metódico,
pontual, correcto. Justina não gostava da vizinha do lado. Tinha-lhe raiva
porque ela era bonita e, sobretudo, porque era uma dessas mulheres que estão
por conta, e ainda porque tinha uma casa bem-posta, dinheiro para pagar à
mulher a dias e para mandar vir as refeições de um restaurante, sair à rua
carregada de jóias e rescendente de perfumes. Mas estava-lhe grata porque lhe
proporcionara o pretexto de romper com o marido para sempre. Graças a Lídia,
juntara às suas mil razões a razão maior. Num esforço lento e penoso, como se o
corpo se recusasse ao movimento, levantou-se e acendeu a luz. A sala de jantar,
onde se encontrava, era grande, e a lâmpada que a iluminava tão fraca que, da escuridão
afastada, ficaram penumbras nos cantos. As paredes nuas, as cadeiras de
espaldar vertical, duras e repelentes, a mesa sem brilho e sem flores, os
móveis baços e quase desguarnecidos, e Justina sozinha, no meio deste frio,
muito alta e magra, o vestido preto, e os olhos negros, profundos e calados. O
relógio desandou duas rodas e deu uma pancada tímida. Nove e um quarto. Justina
bocejou com lentidão. Depois apagou a luz e passou ao quarto de dormir. Sobre a
cómoda, o retrato da filha abria um sorriso alegre, a única claridade viva
daquele quarto sombrio e bafiento. Com um suspiro resignado, Justina deitou-se.
Dormia sempre mal. Levava a noite baralhando sonhos,
confusos sonhos de que acordava exausta e perplexa. Apesar do esforço de
memória que fazia, era-lhe impossível reconstituí-los. Só não podia esquecer,
e, mesmo assim, mais como um, pressentimento, ou talvez a lembrança de um
pressentimento, do que como uma certeza, a obsidiante presença de alguém atrás
de uma porta que nem todas as forças do mundo podiam abrir. Antes de adormecer
martelava no cérebro a recordação do rosto de Matilde, das inflexões da sua
voz, dos gestos, das gargalhadas, e, até, da sua face morta, como se tudo isto
pudesse, no sonho, despedaçar aquela porta sempre fechada. Inútil. Cerradas as
pálpebras, Matilde escondia-se, tão escondidamente que Justina só vinha a
encontrá-la, sem mistério, ao acordar no dia seguinte. Mas encontrá-la sem
mistério era perdê-la; vê-la como em vida era ignorá-la.
As pálpebras desceram devagar sob o peso das sombras e do
silêncio. Lentamente, o silêncio e as sombras passavam para o cérebro de
Justina. Ia começar a lenta sarabanda dos sonhos, repetir-se a angustiosa
presença estranha, e a porta fechada que guardava o mistério. De repente, muito
ao longe, ressoaram gemidos surdos e desesperados. A noite ficou arrepiada de
sobrenatural. Os olhos já nublados de Justina abriram-se para a escuridão.
Rolando por montanhas e planícies, despertando ecos nas grutas sombrias e nas
cavidades das árvores antigas, lançando na noite mil ressonâncias trágicas, os
gemidos aproximavam-se e o seu gemer já era chorar e cada lamento uma lágrima caindo
como um punho cerrado, com a força de um punho cerrado. Os olhos perdidos de
Justina lutaram contra a angústia dos sons que lhe enchiam os ouvidos. Sentia
que era arrastada para um abismo negro e fundo, e lutava para não se afundar.
Na queda, apareceu o sorriso claro de Matilde. Agarrou-se-lhe com desespero e
mergulhou no sonho. Atravessando as paredes e subindo até às estrelas, ficou a
música, o andamento lento da Heroica, clamando a dor, clamando a injustiça da
morte do homem». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial
Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
Cortesia
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