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«(…) Na vila não se escutavam os cascos embora
o cavalo continuasse a trotar conforme não se escutavam os sininhos dos
estribos, as azinhagas davam ideia que escuras apesar do dia nos campos que se
detinha antes das primeiras hortas onde um balde, um regador, um alguidar
quebrado, uma mulher a cantar que se calou de súbito ou mandaram calar-se e um
ruído de sapatos numa casa em baixo seguido pelo trinco da porta eu que
imaginava espectros em lugar de pessoas e afinal gente mas quem, não
camponeses, não ciganos, não pobres dado que apesar dos postigos vazios por
vezes numa janela um solitário ou um lustre, um homem num portal a olhar para
mim vestido como os parentes das fotografias e na cara dele Quem é este? qualquer
coisa do meu avô no nariz, no bigode, qualquer coisa de mim que não sei a quem
me assemelho, um homem muito idoso a calcular pelo modo como o corpo se movia Acho
que sei quem é e não me lembro óculos consertados a arame que retirou do bolso
a embaraçar-se nas hastes, regressou um momento a perguntar O neto do meu
filho? porque se distinguiam as palavras apesar da ausência de som, um gato de
cerâmica numa camilha que me recordo de encontrar amputado de orelhas na cave,
uma senhora espreitando por trás dele, o homem para a senhora Não achas? e o
trote do cavalo a escutar-se de novo à medida que a senhora Não sei um
milhafre, dois milhafres em círculos e no entanto imóveis como é próprio dos
milhafres que flutuam quietos, param, regressam, sobem e descem sem mudar de lugar,
é a terra que muda, dobra-se, dilata-se e eles especados salvo quando uma
agitação de asas e bicos no pátio, uma poeirazita, um pedaço de tijolo ao contrário (a senhora que não ligava aos
milhafres indecisa Não sei) e os milhafres a galgarem o ar, de cabeça entre os
ombros, com um frango nas unhas, descobri que fazem os ninhos em penhascos que
não me atrevia a subir não fossem levar-me também arrancando-me as penas, uma
ocasião encontrei um deles no topo da chaminé a fixar-me, escondi-me na lenha
do fogão Um milhafre uma das empregadas veio ao alpendre com a faca do peixe e
voltou-se acusadora Não há milhafre nenhum e realmente milhafre nenhum, a
criação em sossego, só o mulo assustando cães e perús dado que o meu avô criava
em torno um círculo de receio Patrão (e a chávena com mais força no pires, como
era ele com a minha idade avó?) a senhora sumiu-se a compor o cabelo e nisto
recordei-me dela numa fotografia, amparada a uma mesa com um vaso de gerânios
em cima, o cavalo a baloiçar os quadris sentindo as pessoas, como era na época
em que não havia casa nem herdade nem o que o meu avô construiu, uma ondulação
de estevas, uma capela de quinta sem torre nem sino e o meu pai a tranquilizar
o cavalo impedindo-o de recuar como se cheiro de mortos, um segundo homem numa
espécie de latada Voltaste? convencido que eu pertencia ali da mesma forma que
os caniços e as pedras que eram anúncio de ribeiro com o meu avô criança perto
dele a olhar-me, um garoto descalço que me obedeceria se eu Faz isto faz aquilo
por enquanto não Aquele não é o meu neto nem a ordenar à minha mãe Chega cá um
miúdo sem autoridade nem feitor, incapaz de pensar que o sacho do meu pai o desfaria
ombro a ombro, não eu para ele Senhor ele para mim Senhor interessado no
cavalo, querendo que lho emprestasse para o montar sozinho consoante mais tarde
montaria o mulo a fim de examinar as colheitas enquanto as criaturas das
fotografias iam surgindo do nada, plastrons engomados, mantilhas fora de moda
que nem no sótão se encontram, pessoas a espiolharem-se víscera a víscera, esta
trabalha, esta não e de que me serve que trabalhe, mais tempo vivo para quê, eu
pasmado para os milhafres a engordarem sobre os ovos ou esquartejando um galo
aos arrepelos, o comboio ao longe ou o assobio do mato comigo a decidir Vou-me
embora e ficando porque o comboio distante demais e a fronteira a seguir à
lagoa mas onde está a lagoa, falávamos da lagoa sem a termos visto do mesmo
modo que falávamos da fronteira ignorando onde ficava e o que haveria depois (padrões,
ilhas, estátuas?) encerrados na herdade e na casa que mudara sem que nada
faltasse, os defuntos não no cemitério, na vila, lápides que não cobriam
ninguém excepto os soldados da França e por conseguinte a minha mãe (Amanhã
leva as tuas coisas para o andar de cima) numa travessa qualquer a perfumar
baús com a sua caixa a um canto, não falava com a gente, não se ralava
connosco, talvez agora que falecera me chamasse Filho e para além de Filho» In António Lobo
Antunes, O Arquipélago da Insónia, Publicações don Quixote, Leya, 2008, ISBN
978-972-203-694-8.
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