terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcello Simoni. «Ah, o prior! Toda a gente conhece a sua brutalidade. Não sei o que dizer, padre, suspirou o chanceler. Desta vez os estudantes parecem ter feito uma grossa asneira»

jdact

O Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Suger atravessou Paris seguindo os dois dominicanos, como um condenado ao patíbulo. Sabia que tinha a consciência pesada e que iria ser muito difícil esconder os factos. No entanto, havia outra coisa que o perturbava, isto é, a suspeita de que Rolando de Cremona tivesse agido premeditadamente. Quanto mais pensava, mais tinha a certeza disso. Aquele dominicano devia ter ido a Sainte-Geneviève para o provocar e pronunciara o nome do chanceler para o encostar à parede. Philippus Cancellarius alimentava antipatia por qualquer magíster laico, quanto mais por um frade!
Sentindo-se cada vez mais humilhado, Suger avançava um passo após outro sem fazer uma ideia precisa da situação. Por momentos sentiu vontade de fugir, de correr dali para fora como fizera em noites precedentes. Mas não podia marimbar-se para as consequências. Além disso, que exemplo iria dar a Bernard, que, tão obstinado, se lançara em sua defesa como um touro enfurecido, sem lógica nem prudência? O magíster desaprovara, apesar de ter apreciado o seu gesto. Bernard vivia sozinho em Paris, sem família nem amigos próximos. Suger representava o único ponto de referência e a única fonte de conselho. Não se envergonhava de admitir que aquele rapaz conseguira abrir uma brecha no seu espírito cínico.
O caminho para o Capítulo conduziu-o ao bairro latino, onde os festejos de terça-feira gorda estavam no auge. Frei Rolando e o seu confrade olharam em redor com desgosto, os seus olhos lançavam anátemas mudos contra cada uma das pessoas que passavam. Ainda há poucos dias o Carro dos Loucos desfilou por estas ruas, e já estão de novo aos gritos e na estroina, pontificou frei Rolando com uma expressão sombria. Será possível que não consigam fazer outra coisa senão rir? Suger não respondeu. Também ele detestava a confusão e além disso apercebia-se de qualquer coisa de muito preocupante entre a multidão. Havia demasiada agitação. A presença dos guardas citadinos tornava-se opressiva. Aguazis e esbirros por todos os lados... Devia ter acontecido alguma coisa.
Afastaram-se os três da confusão e chegaram a ile de la Cité, onde os festejos eram mais moderados. Nas esquinas dos edifícios nobres, o vaivém do Marché-Palu era animado por música e cortejos, enquanto na Praça de Notre-Dame um grupo de homens jogava à soule, aos pontapés a uma bola. A sede da chancelaria ficava perto. Seguiram pelo flanco meridional da catedral, ainda não completa depois de sessenta anos de trabalhos, e entraram no palácio do Capítulo. Prosseguiram até à entrada de um aposento espaçoso, circundado de porta e armaria. A sala da chancelaria.
Dois religiosos conversavam no interior, um em frente do outro. Suger reconheceu o corpulento Philippus Cancellarius e o pároco do burgo de Sain-Marcel. Este último, um padreco baixo e chupado, deu-lhe nas vistas por ir frequentemente ao Studium queixar-se das incursões dos estudantes na sua paróquia. O chanceler, porém, idoso e adiposo, não incutia a afamada submissão pela qual era tão temido. Com uma expressão ausente e uma papada flácida, nem se acreditava que, anos antes, fora magíster theologiae e autor de tratados de uma certa espessura. A conversa entre os dois religiosos parecia chegar ao fim. Não passam de uns rapazolas, insistia o pároco de Saint-Marcel. A intervenção da guarda é excessiva. Um exagero. É também o que eu penso, respondia em eco o chanceler. Mas a Coroa não quer ouvir explicações. Já lançou no seu encalço os esbirros do prior.
Ah, o prior! Toda a gente conhece a sua brutalidade. Não sei o que dizer, padre, suspirou o chanceler. Desta vez os estudantes parecem ter feito uma grossa asneira. O diálogo prolongou-se mais um pouco e por fim o pároco de Saint-Marcel afastou-se, amargurado. Assim que ficou sozinho, Philippus Cancellarius convidou os três homens que estavam à porta a dar um passo em frente. Frei Rolando foi o primeiro, saudando com uma vénia. Desculpai, mas não pude deixar de vos ouvir, disse. Problemas grandes? Problemas enormes, replicou o chanceler, aproximando-se de uma grande escrivaninha. Parece que esta manhã um grupo de estudantes terá destruído uma taberna em Saint-Marcel. Não contentes com isso, aqueles desgraçados dirigiram-se à cidade e aí provocaram grandes desordens.
A estas palavras, Suger lembrou-se do que ouvira da boca de Bernard e não pôde deixar de intervir: engano-me ou mencionáveis a intromissão dos esbirros? Não vos enganais, respondeu o chanceler. A Coroa resolveu mobilizar o prior. Mas não estamos a falar de cidadãos comuns, objectou o médico. A punição dos estudantes é problema do Capítulo da catedral, não da Coroa. A lei é esta. Anuindo com ar melancólico, Philippus deu uma volta à escrivaninha e acomodou-se numa cadeira de espaldar alto. Há mais de uma hora que um legado pontifício tenta explicar o caso a sua majestade a rainha Branca, comentou, dirigindo-se sempre a Suger. Se achais poder fazer-se melhor, acomodai-vos.
O médico recuou um pouco. Já tinha bastantes problemas e não costumava bater-se por causas que não lhe diziam respeito. Entretanto deu-se de conta que os presentes se questionavam entre si por meio de um jogo de olhares. Não pôde evitar sentir-se pouco à vontade. Depois o chanceler rompeu o silêncio, interpelando frei Rolando: pois bem, padre, o que vos levou a abandonar o claustro de Saint-Jacques num dia tão movimentado?» In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
                                                                                                              
Cortesia do CdoAutor/JDACT