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O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Suger atravessou Paris
seguindo os dois dominicanos, como um condenado ao patíbulo. Sabia que tinha a
consciência pesada e que iria ser muito difícil esconder os factos. No entanto,
havia outra coisa que o perturbava, isto é, a suspeita de que Rolando de
Cremona tivesse agido premeditadamente. Quanto mais pensava, mais tinha a certeza
disso. Aquele dominicano devia ter ido a Sainte-Geneviève para o provocar e
pronunciara o nome do chanceler para o encostar à parede. Philippus
Cancellarius alimentava antipatia por qualquer magíster laico, quanto mais por
um frade!
Sentindo-se cada vez mais
humilhado, Suger avançava um passo após outro sem fazer uma ideia precisa da
situação. Por momentos sentiu vontade de fugir, de correr dali para fora como
fizera em noites precedentes. Mas não podia marimbar-se para as consequências.
Além disso, que exemplo iria dar a Bernard, que, tão obstinado, se lançara em
sua defesa como um touro enfurecido, sem lógica nem prudência? O magíster
desaprovara, apesar de ter apreciado o seu gesto. Bernard vivia sozinho em
Paris, sem família nem amigos próximos. Suger representava o único ponto de
referência e a única fonte de conselho. Não se envergonhava de admitir que
aquele rapaz conseguira abrir uma brecha no seu espírito cínico.
O caminho para o Capítulo
conduziu-o ao bairro latino, onde os festejos de terça-feira gorda estavam no
auge. Frei Rolando e o seu confrade olharam em redor com desgosto, os seus
olhos lançavam anátemas mudos contra cada uma das pessoas que passavam. Ainda
há poucos dias o Carro dos Loucos desfilou por estas ruas, e já estão de novo
aos gritos e na estroina, pontificou frei Rolando com uma expressão sombria. Será
possível que não consigam fazer outra coisa senão rir? Suger não respondeu.
Também ele detestava a confusão e além disso apercebia-se de qualquer coisa de
muito preocupante entre a multidão. Havia demasiada agitação. A presença dos
guardas citadinos tornava-se opressiva. Aguazis e esbirros por todos os
lados... Devia ter acontecido alguma coisa.
Afastaram-se os três da confusão
e chegaram a ile de la Cité, onde os festejos eram mais moderados. Nas esquinas
dos edifícios nobres, o vaivém do Marché-Palu era animado por música e cortejos,
enquanto na Praça de Notre-Dame um grupo de homens jogava à soule, aos
pontapés a uma bola. A sede da chancelaria ficava perto. Seguiram pelo flanco
meridional da catedral, ainda não completa depois de sessenta anos de
trabalhos, e entraram no palácio do Capítulo. Prosseguiram até à entrada de um
aposento espaçoso, circundado de porta e armaria. A sala da chancelaria.
Dois religiosos conversavam no
interior, um em frente do outro. Suger reconheceu o corpulento Philippus
Cancellarius e o pároco do burgo de Sain-Marcel. Este último, um padreco baixo
e chupado, deu-lhe nas vistas por ir frequentemente ao Studium queixar-se das
incursões dos estudantes na sua paróquia. O chanceler, porém, idoso e adiposo, não
incutia a afamada submissão pela qual era tão temido. Com uma expressão ausente
e uma papada flácida, nem se acreditava que, anos antes, fora magíster
theologiae e autor de tratados de uma certa espessura. A conversa entre os
dois religiosos parecia chegar ao fim. Não passam de uns rapazolas, insistia o
pároco de Saint-Marcel. A intervenção da guarda é excessiva. Um exagero. É
também o que eu penso, respondia em eco o chanceler. Mas a Coroa não quer ouvir
explicações. Já lançou no seu encalço os esbirros do prior.
Ah, o prior! Toda a gente conhece
a sua brutalidade. Não sei o que dizer, padre, suspirou o chanceler. Desta vez
os estudantes parecem ter feito uma grossa asneira. O diálogo prolongou-se mais
um pouco e por fim o pároco de Saint-Marcel afastou-se, amargurado. Assim que
ficou sozinho, Philippus Cancellarius convidou os três homens que estavam à
porta a dar um passo em frente. Frei Rolando foi o primeiro, saudando com uma
vénia. Desculpai, mas não pude deixar de vos ouvir, disse. Problemas grandes?
Problemas enormes, replicou o chanceler, aproximando-se de uma grande
escrivaninha. Parece que esta manhã um grupo de estudantes terá destruído uma
taberna em Saint-Marcel. Não contentes com isso, aqueles desgraçados
dirigiram-se à cidade e aí provocaram grandes desordens.
A estas palavras, Suger
lembrou-se do que ouvira da boca de Bernard e não pôde deixar de intervir: engano-me
ou mencionáveis a intromissão dos esbirros? Não vos enganais, respondeu o
chanceler. A Coroa resolveu mobilizar o prior. Mas não estamos a falar de
cidadãos comuns, objectou o médico. A punição dos estudantes é problema do
Capítulo da catedral, não da Coroa. A lei é esta. Anuindo com ar melancólico,
Philippus deu uma volta à escrivaninha e acomodou-se numa cadeira de espaldar
alto. Há mais de uma hora que um legado pontifício tenta explicar o caso a sua
majestade a rainha Branca, comentou, dirigindo-se sempre a Suger. Se achais
poder fazer-se melhor, acomodai-vos.
O médico recuou um pouco. Já
tinha bastantes problemas e não costumava bater-se por causas que não lhe
diziam respeito. Entretanto deu-se de conta que os presentes se questionavam
entre si por meio de um jogo de olhares. Não pôde evitar sentir-se pouco à
vontade. Depois o chanceler rompeu o silêncio, interpelando frei Rolando: pois
bem, padre, o que vos levou a abandonar o claustro de Saint-Jacques num dia tão
movimentado?» In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do
Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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