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O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Uma questão que quero
colocar-vos, respondeu o frade. Espero que não seja outro sarilho. Infelizmente
assim é. O dominicano apontou para Suger. Aquele é magíster medicinae no
Studium... Conheço-o, como todos os que ocupam uma cátedra em Paris, atalhou
Philippus. Porque o trouxestes à minha presença? Transgrediu as proibições
referentes a Aristóteles. Ensina filosofia natural! O chanceler virou-se para o
acusado. Atribuem-vos uma acção deveras grave, magíster. Tencionais pronunciar-vos
em vossa defesa? Trata-se de um mal-entendido, reverendo padre, minimizou Suger.
Eu ensino medicina, não filosofia natural. Frei Rolando deve ter-se confundido.
Mentira!, gritou Rolando de
Cremona. Eu e o meu confrade ouvimos muito bem. Ele admitiu que Deus não pode
modificar as leis da natureza, pondo assim em discussão a Sua omnipotência.
Como se sabe, trata-se de uma afirmação aristotélica. Era apenas uma forma de
levar os meus alunos a raciocinar, justificou-se o médico, para acalmar as
águas. Todos os fenómenos dependem de uma causa, eis em síntese o que eu estava
a explicar-lhes. Uma defesa fraca, pensou. No entanto, pouco havia a fazer. Não
podendo negar as acusações, apelava à clemência do chanceler. Que, como única
resposta, abanou a cabeça.
Estava a divagar, magíster. Um
crescendo de irritação transpareceu do olhar de Philippus. Agora sim, incutia
sujeição. Frei Rolando está a fazer acusações precisas. Sois lento de
compreensão? Palavras pesadas, quase ofensivas. Suger sentiu-se ferido no seu orgulho
e pôs de lado a moderação. Frei Rolando não percebe nada de ciência médica,
exclamou, mandando para o diabo qualquer possibilidade de compromisso. Como
ousa meter o nariz onde não é chamado?
Baixai a voz, magíster, não estamos
no mercado. O homem sentado chamou a sua atenção com um aceno autoritário. E
deixai que vos refresque a memória. O sínodo de Sens de 1210 proibiu a leitura
e o comentário de Aristóteles. Esta proibição foi renovada pelos Estatutos de
1215 e mais recentemente expressa pelo nosso pontífice…
Enquanto o chanceler exibia
aquele leque de proibições, Suger sentia-se a cozer em lume brando. Um
princípio de náusea começou a atormentar-lhe o estômago ao mesmo tempo que as
paredes da sala pareciam ficar progressivamente mais estreitas. A situação não prometia
nada de bom. Até há uns anos, tolerava-se que os mestres ensinassem a filosofia
natural e recorressem a Aristóteles. Em Toulouse ainda era permitido. Mas não
em Paris, onde o tradicionalismo imperante continuava a encarar a filosofia
como uma escrava da teologia, a sacrificar sempre que resultava incómoda. Em
obediência ao cargo que ocupo, concluiu Philippus, não posso consentir, por
razão alguma, que um docente de Paris divulgue o aristotelismo. Vós
compreendeis, se chegasse aos ouvidos do papa... Reverendo padre, compreendo
muitíssimo bem, defendeu-se o médico. Com toda a franqueza, porém, penso que
estais a considerar que as coisas são mais graves do que realmente são.
Rolando de Cremona agrediu-o,
furioso. Antepor Aristóteles à Bíblia será para vós uma pequena coisa? Estou
surpreendido por vos ter sido concedida a facultas docendi. Mas vós não
podeis seguramente anular-ma, frade, defendeu-se Suger, que ardia de desejo de
lhe apertar o pescoço. Eu, porém, posso, preveniu-o o chanceler. Se
demonstrasse clemência para convosco, daria a impressão de me colocar ao lado
de quem divulga a filosofia natural. Muitas vezes deixei correr. Demasiadas
vezes fingi que não era nada! O médico ficou petrificado. Nunca se sentira tão
humilhado. O seu título e as suas competências eram despidos de qualquer valor,
a sua opinião posta a ridículo. Pensou no pai e nos sacrifícios que fizera para
o mandar estudar. Pensou nas dificuldades superadas em todos aqueles anos...
Não, disse para consigo. Não podia aceitar tais acusações sem pelo menos tentar
contrariá-las. E apertando o abdómen para conter a indisposição, apontou o dedo
contra o chanceler: desafiareis a corporação dos mestres na base de uma
calúnia?» In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do
Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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