A casinha do bosque
«(…) Em compensação, uns e outros detestavam-no, e as sátiras de uns
atacavam a instituição e a pessoa, enquanto as dos outros respeitavam a
instituição. Uns e outros mantinham as aparências e procediam por alusões de
que toda a gente, menos Canuto, possuía a chave, e tanto os monárquicos como os
republicanos acrescentavam cada dia um pequeno detalhe ao mito nacional do rei
Canuto, símbolo sempre, para uns, da suprema estupidez, e para outros da maior
perversidade, em ambos os casos injusto, porque Canuto era medianamente bom,
como o seu antepassado Hamlet, e muito mais inteligente do que a maioria
daqueles que o rodeavam.
Finalmente, consideravam-no um fim de raça. Como ninguém lhe desejava
descendentes que lhe pudessem suceder, propagara-se a lenda da sua
esterilidade, e nunca se pensara num casamento de conveniência, e como as
potências estrangeiras não incluíam a aliança com Canuto nos seus projectos
políticos, e como não despertasse amor nas princesas casadoiras, não porque não
fosse bonito e amável, mas porque relatórios secretos, muitos deles procedentes
de Gisela, contribuíam para a sua má reputação como possível marido, os republicanos
esperavam a sua morte para realizar aquilo a que chamavam a salvação política
do país, e os monárquicos para a dignificação da Monarquia na pessoa do
presumível herdeiro. Por todas estas razões, Canuto perntanecera solteiro.
O dia de Canuto começava com o tiro disparado, do alto de uma torre,
por um velho canhão às oito horas em ponto da manhâ. Acordava com o estrondo, e
invariavelmente confessava a si próprio que gostaria de dormir um pouco mais, e
voltava a adormecer. Davam-lhe uma hora para a higiene pessoal. Às nove tinha
que dar o seu habitual passeio a cavalo pelas ruas da cidade, sem escolta nem
vigilância, para que os cidadãos se convencessem de que ele era um ser inofensivo,
para além de indefeso. De regresso ao palácio às dez, entrava na biblioteca,
onde o esperavam os diários matutinos convenientemente seleccionados, que ele
tinha que ler e quase aprender como uma lição nos parágrafos e passagens assinaladas
a lápis vermelho pelo senhor Camareiro-Mor, factótum e chefe da camarilha
palaciana.
Na manhã em que começa esta história, o tiro de canhão das oito horas
soou rotundo e impertinente como de costume. Canuto abriu os olhos no quarto
escuro e decidiu, como todas as manhãs, que o estrondo tinha sido uma
alucinação e que podia continuar a dormir. Nesse mesmo instante entrou Gibbs, o
seu criado de quarto. Trazia na mão uma bandeja com um jarro de água e o first
cup of tea que Canuto introduzira nos seus hábitos depois de uma breve
estada em Inglaterra, convidado pessoal do Príncipe de Gales. Gibbs deixou a
sua carga sobre uma cómoda, avançou pela alcova, abriu a janela e os cortinados.
Uma luz tristonha e fria penetrou no quarto. Lá fora chovia. Gibbs aproximou-se
do leito real e disse: bom dia, Majestade. Está uma excelente manhã. E Canuto
respondeu com voz turva: já sei, Gibbs. Tenho muito sono». In Gonzalo Torrente Ballester, A
Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos,
Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.
Cortesia de
Caminho/JDACT