sábado, 29 de dezembro de 2018

A Bela Adormecida Vai à Escola. Gonzalo Ballester. «Canuto abriu os olhos no quarto escuro e decidiu, como todas as manhãs, que o estrondo tinha sido uma alucinação e que podia continuar a dormir»

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A casinha do bosque
«(…) Em compensação, uns e outros detestavam-no, e as sátiras de uns atacavam a instituição e a pessoa, enquanto as dos outros respeitavam a instituição. Uns e outros mantinham as aparências e procediam por alusões de que toda a gente, menos Canuto, possuía a chave, e tanto os monárquicos como os republicanos acrescentavam cada dia um pequeno detalhe ao mito nacional do rei Canuto, símbolo sempre, para uns, da suprema estupidez, e para outros da maior perversidade, em ambos os casos injusto, porque Canuto era medianamente bom, como o seu antepassado Hamlet, e muito mais inteligente do que a maioria daqueles que o rodeavam.
Finalmente, consideravam-no um fim de raça. Como ninguém lhe desejava descendentes que lhe pudessem suceder, propagara-se a lenda da sua esterilidade, e nunca se pensara num casamento de conveniência, e como as potências estrangeiras não incluíam a aliança com Canuto nos seus projectos políticos, e como não despertasse amor nas princesas casadoiras, não porque não fosse bonito e amável, mas porque relatórios secretos, muitos deles procedentes de Gisela, contribuíam para a sua má reputação como possível marido, os republicanos esperavam a sua morte para realizar aquilo a que chamavam a salvação política do país, e os monárquicos para a dignificação da Monarquia na pessoa do presumível herdeiro. Por todas estas razões, Canuto perntanecera solteiro.
O dia de Canuto começava com o tiro disparado, do alto de uma torre, por um velho canhão às oito horas em ponto da manhâ. Acordava com o estrondo, e invariavelmente confessava a si próprio que gostaria de dormir um pouco mais, e voltava a adormecer. Davam-lhe uma hora para a higiene pessoal. Às nove tinha que dar o seu habitual passeio a cavalo pelas ruas da cidade, sem escolta nem vigilância, para que os cidadãos se convencessem de que ele era um ser inofensivo, para além de indefeso. De regresso ao palácio às dez, entrava na biblioteca, onde o esperavam os diários matutinos convenientemente seleccionados, que ele tinha que ler e quase aprender como uma lição nos parágrafos e passagens assinaladas a lápis vermelho pelo senhor Camareiro-Mor, factótum e chefe da camarilha palaciana.
Na manhã em que começa esta história, o tiro de canhão das oito horas soou rotundo e impertinente como de costume. Canuto abriu os olhos no quarto escuro e decidiu, como todas as manhãs, que o estrondo tinha sido uma alucinação e que podia continuar a dormir. Nesse mesmo instante entrou Gibbs, o seu criado de quarto. Trazia na mão uma bandeja com um jarro de água e o first cup of tea que Canuto introduzira nos seus hábitos depois de uma breve estada em Inglaterra, convidado pessoal do Príncipe de Gales. Gibbs deixou a sua carga sobre uma cómoda, avançou pela alcova, abriu a janela e os cortinados. Uma luz tristonha e fria penetrou no quarto. Lá fora chovia. Gibbs aproximou-se do leito real e disse: bom dia, Majestade. Está uma excelente manhã. E Canuto respondeu com voz turva: já sei, Gibbs. Tenho muito sono». In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.

Cortesia de Caminho/JDACT