«(…) Assim,
da mesma forma que as crianças aprendem a agradar aos pais andando de bicicleta
e indo para a cama quando eles mandam, elas desenvolvem furtivamente
habilidades mais sombrias, em geral relacionadas a latas de biscoito guardadas
em lugares arriscados; no meu caso, foi a capacidade de abrir e fechar a velha
porta do sótão sem fazer barulho. Embora eu não precisasse daquele truque havia
muitos anos, fiquei satisfeita ao constatar que ainda o dominava. Parei um
instante na soleira e fiquei escutando por alguns instantes os ruídos lá de
baixo, mas tudo o que captei foi o tilintar ocasional de xícaras. No dia
inteiro, os meus pais na verdade só tinham um hábito previsível, que era ler
juntos o jornal depois do almoço. Era inútil tentar envolvê-los numa conversa a
três nessa hora; uma vez guardada a louça e feito o café, eles perdiam-se
felizes num mundo feito de críquete e políticos corruptos.
Mesmo assim, não
consegui parar de pensar que os dois estavam lá em baixo quando acendi a única
lâmpada do sótão, que parecia pendurada no tecto por grossas teias de aranha.
Ao avançar pelo piso, tentei lembrar-me de qual das tábuas rangiam e quais eram
seguras..., mas logo percebi que muitos anos se haviam intrometido entre mim e
o caminho que eu conhecia tão bem. Imprensado debaixo de nosso íngreme telhado,
o sótão era basicamente um vão triangular sem luz natural, excepto a que
entrava pela janela em formato de meia-lua junto à cumeeira norte. Apesar de
empoeirado e deserto, aquele cómodo sempre exercera um estranho fascínio sobre
mim. Quando criança, sempre que espiava dentro de uma velha mala de couro ou
baú de madeira ali, eu esperava encontrar algo mágico. Talvez fosse uma caixa
de jóias esquecida, ou então uma bandeira pirata esfarrapada, ou ainda um maço
de cartas de amor ressecadas..., aquele recinto e seu cheiro esquisito de cedro
e naftalina continham sempre a promessa de segredos de família e portais para
outros mundos. Então, um belo dia, quando eu tinha 9 anos, a porta mágica
finalmente se abriu.
Avó.
Eu ainda podia vê-la ali em pé, de costas, olhando por horas a fio pela janela em
formato de meia-lua..., não com a resignação saudosa que se poderia esperar de
alguém trancado a sete chaves, mas com determinação, como se estivesse à espreita
de um ataque inevitável. Até então, tudo o que eu sabia sobre a mãe do meu pai
era que ela estava doente num hospital de um país distante. A parte do país
distante era invenção minha, decerto para explicar o facto de nunca a
visitarmos como íamos visitar a avó durante a sua doença longa e inexplicada.
Sem pensar muito no assunto, imaginava-a acamada como ele, com tubos de plástico
a entrar e sair pelas roupas, mas em algum lugar no estrangeiro, com paredes
caiadas e um crucifixo pendurado acima da cabeceira.
Mas do nada, numa tarde de
chuvinha fina, eu tinha chegado do colégio e encontrado uma mulher alta em pé
no meio da nossa sala, com uma pequena mala no chão ao seu lado e uma expressão
de rara serenidade no rosto. Diana!, exclamara a mãe, acenando impaciente para
mim. Venha cumprimentar a avó. Olá, balbuciara, embora na mesma hora sentisse
que o cumprimento era inadequado. Mesmo então dava para sentir que algo não se
encaixava a respeito daquela desconhecida de braços e pernas compridos, mas me
lembro de ser incapaz de identificar o quê.
Talvez
fosse o facto de ela ainda estar vestida com a capa para chuva, o que lhe dava
o aspecto de uma simples transeunte à espera de um autocarro ou alguém que sairia
a qualquer instante. Ou talvez eu estivesse confusa, pois, na minha experiência
obviamente um tanto limitada, aquela mulher não se parecia em nada com uma avó.
Em vez do cabelo enroladinho com permanente das senhoras da cidade, usava uma
trança grisalha que descia pelas costas e o seu rosto quase não exibia rugas.
Na verdade, o seu rosto quase não tinha expressão». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida,
2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
Cortesia de EArqueiro/JDACT