Invasão
da Galiza
«(…) Mas será que o Trastâmara
assassino não vem a terreiro defender o território galego?, interrogava-se Fernando
I com justificada surpresa, em voz alta, para que os mais próximos ouvissem e comentassem.
Não vem, senhor!, afirmou o conde Andeiro. Todos na Hispânia vos conhecem.
Sabem o cavaleiro que vós sois, temem-vos. Se não o fordes buscar, majestade,
ao vosso encontro é que ele não virá. Travestido de uma confiança construída
por aduladores, Fernando avançou. Ir em frente não lhe custava, mas ao chegar a
Monterrey teve a primeira surpresa. O pueblo não tinha mais do que uma
fortaleza mal defendida, com pouca população, incapaz de se defender de um
exército inteiro. Mas o que se havia de fazer? Teimosos, não queriam nada com o
rei português, uns ingratos que não viam nele o rei elegantíssimo que era. Rejeitam-me?
Não querem um rei bem-parecido e de boas maneiras? Preferem um assassino? Pois
bem, vamos lá a ver se têm ameias que cheguem para aguentar a força lusitana.
Pelo sim, pelo não, Fernando
pediu ao conde Andeiro que parlamentasse com os sitiados. E já estava a ser
magnânimo. Oferecia-lhes uma rendição honrosa, isso bastava, porque a outra
hipótese era arrasar Monterrey com tudo o que havia lá dentro. Na volta, o
conde Andeiro apenas disse que os do castelo preferiam morrer a deixar-se
governar por um rei estranho. Estranho? Nem estranho, nem mal acabado, o que
eles querem é empatar, deduziu o rei. A indignação do formoso rei não tinha
razão de ser. O que os de Monterrey queriam dizer é que ele era estrangeiro,
galego não era de certeza. As vossas palavras são ordens que todos
respeitaremos, assentiu João Fernandes Andeiro, disposto a expulsar as dúvidas
da cabeça do rei, mas, senhor, o que o alcaide quis dizer é que vós sois
estrangeiro, não tem nada de pessoal.
Adiante, tomai a dianteira,
mandai formar as forças e atacai. Os engenhos do contrapeso começaram a
deslocar-se devagar, e quando chegaram à distância de tiro, lançaram os seus
pesados pedregulhos contra as portas e as ameias do frágil castelo, começando a
partir os cubos e a destapar os sitiados que tentavam com as suas bestas
acertar nos combatentes portugueses. Partidos os dentes do castelo, as bastidas
(construção de madeira como torre ou castelo mais alto do que a muralha do inimigo,
permitindo aos assaltantes desfechar ataques sobre os sitiados escondidos atrás
das ameias) logo avançaram até se encostarem às muralhas, num instante
despejando dentro do burgo hordas de guerreiros prontos a matar e a pilhar o
que por lá houvesse.
A vitória sobre os de Monterrey
foi um ápice. Embriagado pelo triunfo insignificante, transformado logo pelos
apologistas em uma batalha decisiva, el-rei convenceu-se de que não havia força
que o detivesse na sua caminhada triunfal: hoje foi Monterrey, mais à frente e
mais longe será Valladolid, até só haver um rei em toda a Hispânia. Viva o nosso
rei, viva Portugal! Viva a Galiza!, exultavam com ele uma corja de bajuladores
e sanguessugas do erário.
Tal como o rei e os grandes
nobres que o apoiavam, também a peonagem se deixou levar pela onda de
entusiamo. Não era para tanto, mas que se havia de fazer? A vitória é o oposto
da derrota, nisso o rei e toda aquela pantalha tinham razão, pois se fosse ao
contrário, se em vez de vencer, fracassassem, seria uma humilhação. Por isso,
os quatro amigos da taberna da Mariamem, lídimos representantes das classes
menos favorecidas, regalavam-se à sombra dos choupos frondosos nas margens da
ribeira, comendo uma galinha que surripiaram com facilidade. Sim, era uma
guerra cansativa, está bem de ver, pois andar de um lado para o outro com a
tralha às costas, sempre disponíveis para acorrer às requisições dos seus
senhores, custava muito, mas tinha as suas compensações, entre elas os soldos
que entrariam no bornal, e como naquele dia, comer um acepipe sem penas». In
Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN
978-989-724-344-8.
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