sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Não, não me dói nada, talvez um pouco a cabeça, uma insignificância, uma impressão, uma tontura. Este rumor monótono de conversa, estes odores misturados»

wikipedia e jdact

«(…) O comboio que fugiu connosco daquela Cruz Quebrada africana e da sua coroa de guindastes oxidados e gaivotas pernaltas acabou por depositar-nos numa espécie de quartel ao largo de Luanda, casernas de cimento a arderem no calor, onde o suor crepitava na pele como bolhas de fervura. Nos alojamentos dos oficiais, cercados de bananeiras de grandes folhas franjadas idênticas a asas de arcanjos em ruína, os mosquitos atravessavam a rede das janelas para produzirem no escuro, em conjunto, um rumor insistente e agudo em que o meu sangue, sorvido em bochechos rápidos e finalmente liberto de mim, cantava. Lá fora, um céu de estrelas desconhecidas surpreendia-me: assaltava-me por vezes a impressão de que haviam sobreposto um universo falso ao meu universo habitual, e que me bastaria romper com os dedos esse cenário frágil e insólito para reingressar de novo no quotidiano do costume, povoado de rostos familiares e de cheiros que me acompanhavam com a fidelidade dos cachorros. Jantávamos na cidade em esplanadas sórdidas repletas de soldados, entre cujos joelhos circulavam de cócoras engraxadores miseráveis, lançando-lhes às botas soslaios veementes de paixão, ou indivíduos sem pernas que estendiam timidamente manipansos esculpidos a canivete, equivalentes às Torres de Belém de plástico do meu país natal. Sujeitos brancos sebentos, de pasta sob o braço, trocavam dinheiro português por dinheiro angolano num vagar sabido de agiotas; ruas, que se pareciam todas com a Morais Soares, aproximavam-se e afastavam-se num labirinto atrapalhado a caminho da fortaleza; néon provinciano espalhava-se nos passeios em poças piscas de estrabismo alarajando. Ancorado na baía, o navio que nos trouxera duplicava o reflexo na água preparando a partida: ia regressar sem mim ao Inverno e ao nevoeiro de Lisboa onde tudo prosseguia irritantemente na minha ausência com o ritmo do costume, permitindo-me imaginar, despeitado, o que se seguiria de modo inevitável à minha morte e que era, afinal, o prolongamento da indiferença morna e neutra, sem entusiasmo nem tragédias, que eu tão bem conhecia, feita de dias cosidos uns aos outros numa fúnebre burocracia desprovida de inquietações de labareda. Acredita nos sobressaltos, nos grandes lances, nos terramotos interiores, nos voos planados de êxtase? Desengane-se, minha cara, tudo não passa de uma mistificação óptica, de um engenhoso jogo de espelhos, de uma mera maquinação de teatro sem mais realidade que a cartolina e o celofane do cenário que a enformam e a força da nossa ilusão a conferir-lhe uma aparência de movimento. Como este bar e os seus candeeiros Arte Nova de gosto duvidoso, os seus habitantes de cabeças juntas segredando-se banalidades deliciosas na euforia suave do álcool, a música de fundo a conferir aos nossos sorrisos a misteriosa profundidade dos sentimentos que não possuímos nunca; mais meia garrafa e cuidar-nos-íamos Vermeer, tão hábeis como ele para traduzir, através da simplicidade doméstica de um gesto, a tocante e inexprimível amargura da nossa condição. A proximidade da morte torna-nos mais avisados ou, pelo menos, mais prudentes: em Luanda, à espera de seguir dentro de dias para a zona de combate, trocávamos com vantagem a metafísica pelos cabarés safados da ilha, um pega de cada lado, o balde de espumante Raposeira à frente, e a pequena vesga do strip-tease a despir-se no palco no mesmo alheamento cansado com que uma cobra velha muda de pele. Acordei algumas vezes em quartos de pensão manhosa sem haver entendido sequer como para lá entrara, e vesti-me em silêncio buscando os sapatos sob um soutien de rendinhas pretas no intuito de não perturbar o sono de um vulto qualquer enrolado nos lençóis, e de que percebia somente a massa confusa dos cabelos. De facto, e consoante as profecias da família, tornara-me um homem: uma espécie de avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa de me esconder de mim próprio, tinha substituído para sempre o frágil prazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza, e que me parece escutar, sabe?, de tempos a tempos, à noite, ao voltar para casa, numa rua deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troça.

Não, não me dói nada, talvez um pouco a cabeça, uma insignificância, uma impressão, uma tontura. Este rumor monótono de conversa, estes odores misturados, as feições que se desarrumam e se deslocam no acto de falar atordoam-me: não conheço ninguém, não possuo o hábito destes templos exóticos em que se sacrificam não já vísceras de animais mas o próprio fígado, modernas catacumbas a que as lâmpadas votivas das luzes raras e o murmúrio de reza das conversas conferem uma tonalidade de religião sacrílega de que o barman é o bezerro de oiro, imóvel atrás do altar-mor do balcão, cercado pelos diáconos dos frequentadores do costume, que erguem em seu louvor black-velvets rituais. As cruzes do timol substituem os crucifixos, jejuamos pela Páscoa a fim de baixar as gorduras do sangue, comungamos aos domingos vitaminas purificadoras, confessamos ao analista os atropelos à castidade, e recebemos de penitência a sua conta mensal; nada mudou, como vê, salvo que nos consideramos ateus porque, em lugar de batermos com a mão no peito, bate o médico por nós com o diafragma do estetoscópio. Sinto-me aqui, percebe, como sentia em pequeno o meu pai na igreja, nas missas pelos defuntos da família onde chegava invariavelmente a meio, plantado junto à pia de água benta, de mãos atrás das costas, Robespierre de canadiana a desafiar as caixas das esmolas e os olhos de barro triste dos santos. Pertenço sem dúvida a outro sítio, não sei bem qual, aliás, mas suponho que tão recuado no tempo e no espaço que jamais o recuperarei, talvez que ao Jardim Zoológico de dantes e ao professor preto a deslizar para trás no rinque de patinagem sob as árvores, entre os guinchos dos bichos e a campainha do vendedor de gelados. Se eu fosse girafa amá-la-ia em silêncio, fitando-a de cima da rede numa melancolia de guindaste, amá-la-ia com o amor desajeitado dos exageradamente altos, mastigando o chiclets de uma folha pensativa, ciumento dos ursos, dos papa-formigas, dos ornitorrincos, das catatuas e dos crocodilos, e desceria trabalhosamente o pescoço pelas roldanas dos tendões para esconder a cabeça no seu peito em trêmulas marradas de ternura». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
                         
Cortesia DomQuixote/JDACT