A Pedra do Exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«Foi então que Maynard de Rocheblanche
compreendeu. A intriga em que fora metido era bem mais ampla e complexa do que
poderia ter imaginado. Karel do Luxemburgo não devia ser o único homem de poder
envolvido na morte de Jang Blannen, e talvez nem sequer o mais perigoso. O cavaleiro
intuiu que não se podia permitir agir com ingenuidade. Tinha a sensação de se
encontrar sob o alcance de um grande olho que o observava de cima. O olho de um
indivíduo desapiedado que o cercaria por todos os lados.
Observou pela última vez o bosque
onde a mulher desaparecera. Depois, procurando vencer a ansiedade, esporeou o
cavalo para este, ao longo do caminho que serpenteava à luz de um novo dia.
Reims, Convento de Sainte-Balsamie
8 de Setembro
Os dedos da freira passaram pela
cabeça do homem inconsciente, exercendo uma leve pressão nas margens do
hematoma, pouco acima da têmpora. A irmã Eudeline observava-o em silêncio,
ansiando por uma resposta, e entretanto pensava no homem que ficara à espera, fora
do valetudinarium. Trata do meu
companheiro de armas, dissera-lhe. Depois falamos. Eudeline assentira, apesar
de agastada pela sua atitude. O irmão apresentara-se depois de quase dois anos de
ausência e nem sequer se dera ao trabalho de lhe apertar as mãos, quanto mais
de lhe dirigir uma palavra carinhosa. E sabia Deus como precisava disso. A
clausura concedera paz e sabedoria, mas roubara-lhe os momentos de alegria
decorridos em companhia de Maynard e da mãe de ambos. Essas memórias nunca a
abandonavam, nem nas horas de oração, quando tudo o resto se eclipsava em torno
das luzes esfumadas dos círios. Contudo, Eudeline não teria abandonado o claustro
por motivo algum no mundo, visto que entre os seus muros encontrara a salvação.
Não apenas da alma, mas também da razão. A monja infirmaria retirou os
dedos do hematoma.
Reverenda madre, parece-me que o
inchaço se deve a uma fratura. Uma ferida grave?, perguntou Eudeline,
regressando à realidade. Aproximou-se de Robert de Vermandois, deitado numa
comprida tábua de madeira, entregue a um atormentado delírio.
Como única resposta, a freira
convidou-a a observar o inchaço violáceo na cabeça. Receio que um fragmento
ósseo se tenha desfeito e esteja a comprimir o cérebro. Hesitou um instante e
depois pousou a mão sobre dois livros colocados na mesa que se encontrava ao
lado, como que para avalizar a sua tese.
Eudeline conhecia bem aqueles
códices, os manuais de prática cirúrgica de Rogerio Frugardi e de Henri de
Mondeville. Havia anos, ela própria os consultara, para aprender algumas noções
da arte médica, mas sentira-se repugnada. Apercebendo-se de que estavam abertos
nas ilustrações do crânio humano, foi tomada de um frémito. Pensais que será
necessário...
Se estiver certa, terei de fazer
uma incisão na pele e no osso, disse a freira, determinada. Precisarei de
ajuda, talvez da irmã Marie... Eudeline abanou a cabeça. A irmã Marie é velha,
não tem mão firme». Então quem...» In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem
Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN
978-989-724-278-6.
Cortesia de CdoAutor/JDACT
JDACT, Marcello Simoni, Literatura, Conhecimento, Itália,