Um morto e quatro e quatro funerais
«No final, São Paulo ganhou a
disputa e ficou com o corpo da imperatriz. Dessa forma, dona Leopoldina, que
escrevera certa vez à irmã Maria Luísa: nesta corte é necessário um espírito
de sacrifício, sob todos os pontos de vista, acabou por ir parar a São
Paulo, cidade em que nunca estivera em vida, na famosa colina do Grito,
126 anos depois de morta.
A vinda do corpo de dona Leopoldina
abria um precedente. A cripta passava de cenotáfio a um local consagrado pela
religião católica, condição imposta pelos trinetos de dona Leopoldina, Pedro
Henrique e Pedro Gastão, para que concordassem com o traslado do corpo desde o
convento, no Rio de Janeiro, até à colina do Ipiranga. Estava criada, assim, a
oportunidade de preencher o outro sarcófago vazio, dedicado a Pedro I.
A possibilidade de trazer o corpo
do imperador surgiu 18 anos após a chegada de dona Leopoldina à cripta. Em
1964, foi instaurado no Brasil, a partir de um golpe, um regime militar. O
nacionalismo, a exaltação dos símbolos pátrios e das festas cívicas, nas quais
se buscava um simulacro de participação política no Estado Nacional,
constituíram o cenário perfeito para a apoteótica festa em homenagem aos 150
anos de independência, em 1972. Desse modo, um comité foi instituído pelo
presidente Médici visando a preparação das festividades e as diligências junto
de outra ditadura, a salazarista, de Portugal, paru a vinda do corpo de Pedro
para o Brasil.
Assim, o nosso inquieto imperador
atravessaria pela terceira vez o oceano Atlântico, agora para protagonizar um
espetáculo repleto de símbolos históricos e religiosos. Transformado pela
ditadura brasileira numa verdadeira relíquia sagrada, é de se considerar a
opinião que Pedro, paladino liberal e constitucional sem muita paciência para
solenidades, teria a respeito de ser usado por um sistema de governo contra o
qual provavelmente, se vivo, lutaria.
Opositores e defensores não
faltavam na época no Brasil, inclusive entre descendentes de pessoas ligadas
intimamente à vida de Pedro, como José Bonifácio Andrada Silva e o marquês de
Barbacena. Dois frutos da linhagem do Patriarca da Independência, o deputado
federal Zezinho Bonifácio e o general António Carlos Andrada Serpa, estavam ao
lado do regime militar, nada, aliás, muito diferente da índole do famoso
antepassado, reputado como homem autoritário. Por outro lado, Vinícius Caldeira
Brant, sociólogo e ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), bem
como descendente do marquês de Barbacena, era torturado nos porões da ditadura
durante as festividades do Sesquicentenário da Independência.
Portugal preparou-se para o
traslado do ex-monarca. Localizaram o corpo no Panteão dos Bragança, no
mosteiro lisboeta de São Vicente de Fora, e providenciaram três novos caixões
para Pedro: um de madeira, estofado e forrado internamente com tecido, onde o
corpo foi acomodado, envolvido por um de chumbo e outro de pau-santo ornado com
símbolos portugueses e brasileiros. O peso total era de 250 kg.
O cerimonial em Portugal teve
início em 10 de Abril de 1972, quando houve uma cerimónia religiosa no Panteão
dos Bragança. Posteriormente, o esquife foi conduzido por soldados portugueses
até ao exterior do templo, onde uma força do 5" Batalhão de Caçadores, do
qual Pedro fora comandante, prestou ao monarca as devidas honras militares. O
caixão foi colocado num veículo do exército e transportado por Lisboa, sob
escolta de um esquadrão de cavalaria da Guarda Nacional Republicana, até ao
cais de Santa Apolónia, onde veio a ser embarcado no navio Funchal por
fuzileiros navais de ambas as nacionalidades. Nesse momento, dois navios de
guerra, um brasileiro e um português, deram uma salva de 21 tiros». In Paulo
Rezzutti, Pedro IV, A História Não Contada, 2015, Casa das Letras, 2016, ISBN
978-989-741-495-4.
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