domingo, 17 de setembro de 2023

Napoleão Vem Aí. Domingos Amaral. «Dentro de casa, a excitação barulhenta da mulher assemelhara-se a um exercício de tortura, mas, ao longo da viagem de carruagem até Coimbra…»

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A Invasão Francesa

30 de Setembro de 1808 (dia da morte de Ana)

«(…) Francisca sai do quarto, mas Miguel permanece junto ao corpo inerte da mulher. Custe o que custar, terá de enfrentar o general Galopim, seu sogro. Teme a tormenta que vem aí e sente um profundo cansaço, pois dormiu pouco durante a noite. Deus me ajude, murmura.

Volta a observar os lábios de Ana, escuros e fechados, e parece-lhe ouvir os gritos dela, mas sabe que nunca mais os vai escutar. Eram tantos e tão intensos. Suportou-os a vida toda. A memória é uma bruxa e as nossas recordações são os feitiços que nos lança. Demónios, só demónios.

Na véspera, os diabos andaram à solta. Tomaram conta do palacete, como as galinhas que por ali cacarejam sem rei nem roque, largando os detritos pelos corredores e as penas pelos cantos. Ele lembra-se, ontem foi um longo dia.

29 de Setembro de 1808

(véspera da morte de Ana)

Napoleão vem aí!

O grito entusiasmado que Ana dera ao saber da vinda do imperador francês a Lisboa, fora o dobre de finados daquele casamento. Sentado no seu cadeirão de abas, na sala do palacete da família, aquele maldito grito soa ainda a Miguel como a explosão de uma bomba próxima, que nos faz doer os tímpanos e fere o corpo com estilhaços.

Os exércitos franceses tinham invadido Portugal em Novembro de 1807, comandados pelo general Junot, mas fora apenas em Março do ano seguinte que aquela matilha de oficiais pedantes entrara em completo delírio, preparando-se para a chegada de Bonaparte.

A errada convicção de que Napoleão já atravessava os Pirenéus provocou forte comoção em Lisboa e também dentro do palacete de Miguel, onde Ana se lançou num frenesim de distribuição de ordens às criadas, enquanto o poderoso Junot se enchia de um brio autoritário, mandando engalanar o Palácio de Queluz para receber o imperador e perseguindo os portugueses que resistiam à sua voz de comando um dos quais Miguel, membro do Governo.

Em Março de I808, ninguém sabia ainda que o imperador não viria a Portugal e por isso nesses tristes dias, enquanto ouvia ecoar pelo palacete aquele insuportável Napoleão vem aí!, Miguel convencera-se de que tinha a liberdade em risco e decidira fugir.

Dentro de casa, a excitação barulhenta da mulher assemelhara-se a um exercício de tortura, mas, ao longo da viagem de carruagem até Coimbra, onde se exilou durante meses, o que mais lhe custara fora a memória do desinteresse de Ana. Ele a partir à pressa e ela fria e alheia, sem sequer se despedir. Nem um beijo de adeus, como se lhe fosse absolutamente indiferente separar-se do marido». In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN 978-989-661-041-8.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal,