A Invasão Francesa
30 de Setembro de 1808 (dia da morte
de Ana)
«(…) Francisca sai do quarto, mas
Miguel permanece junto ao corpo inerte da mulher. Custe o que custar, terá de
enfrentar o general Galopim, seu sogro. Teme a tormenta que vem aí e sente um
profundo cansaço, pois dormiu pouco durante a noite. Deus me ajude, murmura.
Volta a observar os lábios de
Ana, escuros e fechados, e parece-lhe ouvir os gritos dela, mas sabe que nunca
mais os vai escutar. Eram tantos e tão intensos. Suportou-os a vida toda. A
memória é uma bruxa e as nossas recordações são os feitiços que nos lança. Demónios,
só demónios.
Na véspera, os diabos andaram à
solta. Tomaram conta do palacete, como as galinhas que por ali cacarejam sem
rei nem roque, largando os detritos pelos corredores e as penas pelos cantos.
Ele lembra-se, ontem foi um longo dia.
29 de Setembro de 1808
(véspera da morte
de Ana)
Napoleão vem aí!
O grito entusiasmado que Ana dera
ao saber da vinda do imperador francês a Lisboa, fora o dobre de finados daquele
casamento. Sentado no seu cadeirão de abas, na sala do palacete da família, aquele
maldito grito soa ainda a Miguel como a explosão de uma bomba próxima, que nos faz
doer os tímpanos e fere o corpo com estilhaços.
Os exércitos franceses tinham invadido
Portugal em Novembro de 1807, comandados pelo general Junot, mas fora apenas em
Março do ano seguinte que aquela matilha de oficiais pedantes entrara em completo
delírio, preparando-se para a chegada de Bonaparte.
A errada convicção de que Napoleão
já atravessava os Pirenéus provocou forte comoção em Lisboa e também dentro do
palacete de Miguel, onde Ana se lançou num frenesim de distribuição de ordens às
criadas, enquanto o poderoso Junot se enchia de um brio autoritário, mandando engalanar
o Palácio de Queluz para receber o imperador e perseguindo os portugueses que
resistiam à sua voz de comando um dos quais Miguel, membro do Governo.
Em Março de I808, ninguém sabia ainda
que o imperador não viria a Portugal e por isso nesses tristes dias, enquanto ouvia
ecoar pelo palacete aquele insuportável Napoleão vem aí!, Miguel convencera-se
de que tinha a liberdade em risco e decidira fugir.
Dentro de casa, a excitação barulhenta
da mulher assemelhara-se a um exercício de tortura, mas, ao longo da viagem de carruagem
até Coimbra, onde se exilou durante meses, o que mais lhe custara fora a memória
do desinteresse de Ana. Ele a partir à pressa e ela fria e alheia, sem sequer se
despedir. Nem um beijo de adeus, como se lhe fosse absolutamente indiferente separar-se
do marido». In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN
978-989-661-041-8.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal,