A Invasão Francesa
29 de Setembro de 1808
(véspera da morte
de Ana)
«Desde esse malfadado dia de Março,
Miguel convencera-se de que Ana já não o amava e enchera-se de um pessimismo cru,
que lhe anulou o habituai sentido de humor. Quem o salvou foi a revolta do povo
português contra os franceses. Na sua alma ressuscitou um alento que julgara desaparecido
e, seis meses depois de ter fugido, regressou a Lisboa juntamente com a tropa portuguesa
e os aliados britânicos, os verdadeiros vencedores das batalhas contra os invasores
napoleónicos.
Porém, se na política e na guerra
já se reabilitara, no amor confirmou-se perdido. Quando, em Setembro de 1808, reentrou
num palacete degradado e desmazelado, onde as galinhas andavam pelas salas, deparou-se-lhe
uma estranha, embora em tudo idêntica à mulher que desposara: a mesma
Cara, a mesma inimitável gritaria.
A história de Ana era a história dos
seus gritos, só que agora estes eram de revolta ácida, provocados pela
inesperada derrota de Junot na batalha do Vimeiro, ou de decepção com o terrível
equívoco a que a leitura das guelras dos peixes, que ela constantemente fazia, a
tinham conduzido.
Na garganta de Ana existira sempre
um grito pronto a soltar-se. O general Galopim, pai dela, costumava dizer que a
fllha não gritava de fome como o povo, mas de desilusão constante, frustrada
com a ausência diária de um brilho e uma grandeza a que julgava ter direito. Ana
educava o filho aos gritos, berrava com as submissas criadas e com as galinhas e
urrava de alegria com as amigas.
Só não gritava comigo, murmura
Miguel. Mas também isso foi chão que deu uvas!
Desde que voltara a casa, os gritos
haviam-se multiplicado, em fervor e frequência. Ana exibia agora uma turbulência
vocal alucinante e fechara-se no quarto após a partida das tropas napoleónicas
de Lisboa. Deitada na cama, usando as colchas e os lençóis como escudos protectores,
urrava de desapontamento, pois vira sucumbir a poderosa crença, que durante
tantos meses alimentara, de que Napoleão iria dominar Portugal. Em agudo sofrimento,
antecipava um castigo perigoso por ter convivido de mais com o general Junot e a
sua alcateia colorida.
O povo português odiava os franceses
e, agora que estes tinham sido vencidos, acusava de traição os seus apoiantes, e
Ana imaginava-se já num tribunal ou mesmo na prisão. Miguel, que há meses a criticara
por ter escolhido o caminho errado, garantia-lhe agora que a proximidade dela aos
franceses nem seria um assunto, pois não só era filha de um general e
esposa de um governante, como nunca apoiara em público a pretensão de Junot ao trono
de Portugal.
De nada valiam essas palavras tranquilizadoras
e, sentado no seu cadeirão de abas, Miguel volta a questionar-se sobre a existência
de um motivo mais íntimo que justifique tanto desatino. É uma dúvida que transporta
há meses. Desejaria Ana ter partido com Junot e os franceses? Amaria ela um daqueles
generais vaidosos e falsos que tinham aterrorizado Portugal: o Delaborde, o Kellerman,
o Loison? Teria sido uma das amantes de Junot, o pedante duque de Abrantes?» In
Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN
978-989-661-041-8.
JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal,