segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Napoleão Vem Aí. Domingos Amaral. «De nada valiam essas palavras tranquilizadoras e, sentado no seu cadeirão de abas, Miguel volta a questionar-se sobre a existência de um motivo mais íntimo que justifique tanto desatino»

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A Invasão Francesa

29 de Setembro de 1808

(véspera da morte de Ana)

«Desde esse malfadado dia de Março, Miguel convencera-se de que Ana já não o amava e enchera-se de um pessimismo cru, que lhe anulou o habituai sentido de humor. Quem o salvou foi a revolta do povo português contra os franceses. Na sua alma ressuscitou um alento que julgara desaparecido e, seis meses depois de ter fugido, regressou a Lisboa juntamente com a tropa portuguesa e os aliados britânicos, os verdadeiros vencedores das batalhas contra os invasores napoleónicos.

Porém, se na política e na guerra já se reabilitara, no amor confirmou-se perdido. Quando, em Setembro de 1808, reentrou num palacete degradado e desmazelado, onde as galinhas andavam pelas salas, deparou-se-lhe uma estranha, embora em tudo idêntica à mulher que desposara: a mesma

Cara, a mesma inimitável gritaria.

A história de Ana era a história dos seus gritos, só que agora estes eram de revolta ácida, provocados pela inesperada derrota de Junot na batalha do Vimeiro, ou de decepção com o terrível equívoco a que a leitura das guelras dos peixes, que ela constantemente fazia, a tinham conduzido.

Na garganta de Ana existira sempre um grito pronto a soltar-se. O general Galopim, pai dela, costumava dizer que a fllha não gritava de fome como o povo, mas de desilusão constante, frustrada com a ausência diária de um brilho e uma grandeza a que julgava ter direito. Ana educava o filho aos gritos, berrava com as submissas criadas e com as galinhas e urrava de alegria com as amigas.

Só não gritava comigo, murmura Miguel. Mas também isso foi chão que deu uvas!

Desde que voltara a casa, os gritos haviam-se multiplicado, em fervor e frequência. Ana exibia agora uma turbulência vocal alucinante e fechara-se no quarto após a partida das tropas napoleónicas de Lisboa. Deitada na cama, usando as colchas e os lençóis como escudos protectores, urrava de desapontamento, pois vira sucumbir a poderosa crença, que durante tantos meses alimentara, de que Napoleão iria dominar Portugal. Em agudo sofrimento, antecipava um castigo perigoso por ter convivido de mais com o general Junot e a sua alcateia colorida.

O povo português odiava os franceses e, agora que estes tinham sido vencidos, acusava de traição os seus apoiantes, e Ana imaginava-se já num tribunal ou mesmo na prisão. Miguel, que há meses a criticara por ter escolhido o caminho errado, garantia-lhe agora que a proximidade dela aos franceses nem seria um assunto, pois não só era filha de um general e esposa de um governante, como nunca apoiara em público a pretensão de Junot ao trono de Portugal.

De nada valiam essas palavras tranquilizadoras e, sentado no seu cadeirão de abas, Miguel volta a questionar-se sobre a existência de um motivo mais íntimo que justifique tanto desatino. É uma dúvida que transporta há meses. Desejaria Ana ter partido com Junot e os franceses? Amaria ela um daqueles generais vaidosos e falsos que tinham aterrorizado Portugal: o Delaborde, o Kellerman, o Loison? Teria sido uma das amantes de Junot, o pedante duque de Abrantes?» In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN 978-989-661-041-8.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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