quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Desvia o olhar dos olhos vermelhos da mãe, ciente de uma dor surda que começou a latejar-lhe dentro da cabeça. Pelo menos, as lágrimas…»

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Sevilha, 1492

«Tudo o mais desapareceu, como se uma grande ave vinda do caos tivesse aterrado ali e arrebatado tudo, deixando apenas alguns vestígios da vida que tinham antes, uma taça em cacos junto da porta, um lume a morrer no meio das cinzas. Tudo desaparecera!

A Mamá que ela conhece também desapareceu, embora o fantasma dela permaneça de pé, mesmo ao seu lado. A aparência é a mesma, mas tem os olhos vítreos e a respiração difícil, entrecortada; torce o xaile nas mãos e põe-se a limpar qualquer superfície que encontre. Umas vezes, suspira, outras, chora com grandes soluços dilacerantes que não têm nada que ver com a Mamá que ela conhece, porque essa Mamá tem o mesmo humor maluco do David e está sempre a dar risadinhas a propósito de tudo e de nada.

Ainda ontem a casa estava cheia de conversas e risos, porque o papá adora ter amigos à sua volta. Encontra caras novas na rua, ou então simplesmente apanha-os nas docas de Triana e leva-os para casa. A essência da vida, chama-lhes ele.

Espera até ouvires esta história, diz, enquanto os encaminha para dentro de casa. E depois começam as histórias: de naufrágios ao largo da costa de África, ou escaramuças com os mouros, ou as ilhas do Mar Oceano. Tudo contado em voz tão alta que, por vezes, pela noite dentro e depois de ir para a cama, Paloma só deseja que se vão todos embora e a deixem dormir.

Os vagabundos do papá estão sempre esfomeados, e não tarda que ele chame a pedir a sopa de açafrão com almôndegas, ervas aromáticas e ovos que a mãe consegue preparar enquanto o diabo esfrega um olho. Quando ela acaba de cozinhar, e servir, e limpar a confusão que eles deixam, o papá pega-lhe na mão e puxa-a para si. Agora, o meu rouxinol vai cantar para nós.

Então a Mamá, com uma expressão radiante e marota, ri-se e finge-se surpreendida. Ergue uma sobrancelha, daquela maneira que ela tem de dizer: Quem, eu?, e, sem mais delongas, ajusta o xaile sobre os braços, ergue o queixo e começa a cantar, gorjeando como um pássaro enquanto as notas altas e cristalinas se escapam pelas traves do tecto. Paloma tem sempre a impressão de que é nesse momento que a magia acontece. À luz das velas, o cabelo da mãe cintila em feéricos dardos de luz, enquanto o rosto se lhe ilumina como num encantamento.

Uma pancada na porta interrompe-lhe os pensamentos. O sinal do papá. Tempo de partirem. Pegando nas mãos da mãe, Paloma desembaraça-as do xaile. Alisa-lhe os caracóis para trás, cobre-lhe a cabeça e aconchega-lhe a pesada capa de lã à volta dos ombros. Anda, Mamá, deixa isso agora. Temos de ir.

Desvia o olhar dos olhos vermelhos da mãe, ciente de uma dor surda que começou a latejar-lhe dentro da cabeça. Pelo menos, as lágrimas da Mamá pararam. Mas podia morrer-se afogado naqueles enormes lagos negros. Inspirando profundamente, apaga a vela, com todos os esforços concentrados em ignorar as perguntas que consegue ver nas suas profundezas. Onde havemos de viver agora?

Com dedos trémulos, roda a chave na fechadura, ouvindo aquele clique familiar de quando o trinco entra na ranhura. Agarra com força na chave, sentindo a sua textura áspera contra a palma da mão. Num sopro, murmura para si própria as palavras: Não demores. Não olhes para trás.

O fontanário canta no silêncio, e no ar pairam os cheiros quotidianos a terra molhada e a cozinhados, enquanto ela guia a mãe através do pátio. Na sombra da parede, David está de atalaia a eventuais informadores que possam rondar as ruas, mesmo àquela hora' Segura a porta aberta e diz, em voz sibilada e ansiosa: - Não há ninguém. Vamos! Vá lá, Estie, coragem!» In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,