Sevilha, 1492
«Nunca mais haverá uma noite tão
longa quanto esta. Nem uma Lua tão implacável. Desliza, sorrateira, pelo céu, lançando
a sua luz sobre a viela lá fora, arrastando a madrugada atrás de si.
O dinheiro cintila à luz das
velas, dois montes bem alinhados sobre a mesa, ducados de ouro e reais de prata.
Cem Estrelas apanhadas do céu. Paloma escolhe uma moeda, erguendo-a bem presa entre
o polegar e o indicador. Pequena, brilhante, tem gravados os nomes do rei e da rainha
de Espanha. Engole!, berra-lhe o pai, com uma expressão resoluta e feroz que ela
nunca lhe vira até ali. Tenho mesmo de engolir?, pergunta ela, ouvindo a sua própria
respiração rouca encher a sala.
Quem mais queres que o faça por ti?
O papá tira uma moeda de ouro e mete-a rapidamente na boca. Bebe um gole de água
e engole-a de um trago. Não custa nada!, grita com uma careta. Pega na faca e lança-se
a cortar o pão. Não vais sentir nada. Os ducados como-os eu.
Paloma pega numa crosta de pão, parte
um pedaço e humedece-o na boca com um gole de água. Mastiga. Leva a moeda aos lábios,
entontecida pelo seu cheiro, como se fosse sangue. Sente o sabor amargo da
massa húmida e a acidez do metal sobre a língua, e a seguir obriga-se a enfiá-la
pela garganta abaixo, engasgando-se com os rebordos ásperos da prata batida.
Vês? A voz do papá é rouca. Este pode
ser o melhor pequeno-almoço que alguma vez comeste! Tem de nos fazer aguentar durante
muito tempo.
A família está sentada em
silêncio à volta da grande mesa de carvalho, mastigando, engasgando-se e engolindo,
enquanto observa as pilhas a diminuir.
Isto é perfeito para uma jornada!
David, o irmão mais novo, ergue as sobrancelhas e revira os olhos, percorrendo a
sala. Vai ser uma trabalheira voltar a reunir estes dois montes!
Enche as bochechas de ar e põe-se
a saltar a pés juntos à volta da mesa, como um gafanhoto, atirando uma moeda ao
ar e apanhando-a na boca aberta. Paloma lança-lhe um olhar de aviso e sufoca uma
gargalhada irreprimível perante a cara cómica do irmão' Não tem graça, mas as
cócegas que sente no peito recordam-lhe que, numa qualquer outra noite,
estariam todos a rir-se das palhaçadas dele.
Levanta-se para encher os jarros de
água, sentindo-se enjoada e com as entranhas às voltas. Dói-lhe a garganta e arde-lhe
o estômago. Com as mãos trémulas, prepara mantimentos para a viagem. Queijo. Pão.
Ovos cozidos. Um belo repasto de pêsames.
Vê
a sala a andar à roda, uma realidade estranha à claridade desbotada de uma
única vela. No chão, a arca onde o papá guarda os seus manuscritos e mapas, partida,
mostra uma fenda grande na tampa onde ele lhe bateu, primeiro com o machado e depois
com o punho, percorrendo a casa como o Anjo da Morte, destruindo toda e qualquer
coisa que não conseguissem transportar consigo». In Brigid Hampton, O Astrólogo
e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,