sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Inês da Minha Alma. Isabel Allende. «A rainha Joana, ainda uma jovem e bela mulher, percorreu Castela durante mais de dois anos, transportando o esquife de um lado para o outro…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«Inés Suárez (1507-1580) Espanhola, nascida em Plasencia, viajou para o Novo Mundo em 1537, onde participou na conquista do Chile e na fundação da cidade de Santiago. Teve grande influência política e poder económico. As façanhas de Inés Suárez, referidas pelos cronistas da sua época, foram quase esquecidas pelos historiadores durante mais de 400 anos. Nestas páginas, narro os acontecimentos tal como foram documentados. Limitei-me a interligá-los através de um exercício mínimo de imaginação. Esta é uma obra de intuição, mas qualquer semelhança com acontecimentos e personagens da conquista do Chile não é casual».

Crónicas de dona Inés Suárez, entregues à Igreja dos Dominicanos para sua conservação e resguardo pela sua filha, dona Isabel de Quiroga, no mês de Dezembro do ano de Nosso Senhor de 1580. Santiago da Nova Extremadura. Reino do Chile.

«Meu none é Inés Suárez, habitante da leal cidade de Santiago de Nova Extremadura, no Reino do Chile, neste ano de Nosso Senhor de 1580. Não tenho certeza da data exacta do meu nascimento, mas a minha mãe assegura que nasci depois da grande fome e do tremendo surto de peste que assolou a Espanha logo após a morte de Filipe, o Belo. Não creio que tenha sido a morte do rei a provocar a peste, como aliás dizia o povo ao ver passar o cortejo fúnebre que deixou no ar, durante dias, um aroma a amêndoas amargas, mas nunca se sabe. A rainha Joana, ainda uma jovem e bela mulher, percorreu Castela durante mais de dois anos, transportando o esquife de um lado para o outro, abrindo-o de vez em quando para beijar os lábios do marido, na vã esperança de que pudesse ressuscitar. Apesar dos unguentos do embalsamador, o Belo fedia. Quando eu vim ao mundo, já a infeliz rainha, louca de todo, estava recolhida no palácio de Tordesilhas com o cadáver do seu consorte; o que significa que tenho, pelo menos, setenta Invernos às costas e que hei-de morrer antes do Natal. Podia dizer-vos que, nas margens do rio Jerte, uma cigana adivinhou a data da minha morte, mas essa seria uma daquelas mentiras que se costumam espetar nos livros e, que por estarem impressas, parecem verdadeiras. A cigana só me augurou uma vida longa, que é o que sempre nos dizem em troco de uma moeda. O que me anuncia a proximidade do fim é o meu coração desordenado. Sempre soube que havia de morrer velha, em paz e na minha cama, como morrem todas as mulheres da minha família; por isso não vacilei quando precisei de enfrentar o perigo, já que ninguém se vai deste mundo antes da sua hora. Tu vais morrer de velhinha, de nada mais, senoray, tranquilizava-me Catalina, no seu castelhano afável do Peru, quando o persistente galope de cavalos me enchia o peito e me deitava ao chão. Já me esqueci do nome quíchua de Catalina e também já é demasiado tarde para lho perguntar, enterrei-a no pátio de minha casa há muitos anos, embora tenha plena confiança na precisão e veracidade das suas profecias. Catalina começou a servir-me na antiga cidade de Cuzco, verdadeira jóia dos Incas, na época de Francisco Pizarro, aquele bastardo corajoso que, dizem as más-línguas, guardava porcos em Espanha e acabou transformado em marquês Governador do Peru, cansado da sua ambição e de múltiplas traições. São assim as leis deste novo mundo das índias, onde as leis tradicionais nada podem e tudo é possível: santos e pecadores, brancos, negros, pardos, índios, mestiços, nobres e lavradores. Qualquer um pode andar por aí a arrastar correntes, ser marcado com ferros em brasa e, no dia seguinte, num golpe de sorte, ver a sua vida mudada num ápice. Vivi mais de quarenta anos no Novo Mundo e ainda não me habituei a esta desordem, ainda que também eu tenha beneficiado dela; se tivesse ficado na minha terra natal, hoje seria uma idosa pobre e cega de tanto bordar à luz das candeias. Lá seria a Inés, costureira da rua do Aqueduto. Aqui, sou dona Inés Suárez, senhora de grande importância, viúva do Excelentíssimo Governador don Rodrigo Quiroga, conquistadora e fundadora do Reino do Chile. Como disse, tenho pelo menos setenta anos, bem vividos, mas a minha alma e o meu coração, ainda agarrados aos resquícios da juventude, perguntam-se o que diabo terá acontecido com o corpo. Ao ver-me no espelho de prata, o primeiro presente que Rodrigo me ofereceu quando nos casámos, não reconheço aquela avó de cabelos brancos que o espelho me devolve. Quem é esta que se faz passar pela verdadeira Inés? Examino-a de perto, com a esperança de poder encontrar, bem no fundo do espelho, aquela menina de tranças e joelhos esfolados que já fui um dia, a jovem que fugia pelos pomares para fazer amor às escondidas, ou a mulher madura e apaixonada que dormia abraçada a Rodrigo Quiroga. Tenho a certeza de que, algures, estão ali escondidas, mas não as consigo ver. Já não consigo montar a minha égua, não uso cota de malha nem espada, não por falta de vontade, que vontade sempre tive de sobra, mas porque o corpo me trai. Faltam-me as forças, doemme as articulações, tenho os ossos gelados e a vista nublada. Se não usasse os óculos, que mandei vir do Peru, nem sequer conseguiria escrever estas páginas. Quis acompanhar Rodrigo, que Deus o tenha em seu Santo Descanso, na sua última batalha contra os índios mapuche, mas ele não me quis levar. Estás muito velha para isso, Inés, disse a rir. Estou tão velha como tu, respondi-lhe, apesar de não ser verdade, já que Rodrigo era uns anos mais novo que eu. Ambos acreditávamos que não nos veríamos mais, mas despedimo-nos sem lágrimas, certos de que nos encontraríamos na outra vida. Há muito tempo que sabia que Rodrigo tinha os dias contados, apesar do seu esforço para me esconder os factos. Nunca o ouvi queixar-se, aguentava as dores com os dentes cerrados e só o suor que lhe escorria pela testa o denunciava. Partiu febril, rumo ao Sul, pálido, com uma chaga coberta de pus numa perna que nenhum dos meus remédios e orações conseguiu curar; partiu para cumprir o seu desejo de morrer como um soldado no alvoroço do combate e não como um velho prostrado entre os lençóis do seu leito. Eu queria estar com ele para, nos momentos finais, lhe segurar na cabeça e agradecer o amor que me dedicou durante as nossas longas vidas. Olha, Inés, disse-me, mostrando os nossos campos, que se estendem até ao sopé da cordilheira. Deus colocou tudo isto, mais as centenas de almas dos índios que aqui trabalham, ao nosso encargo. Tal como eu tenho por obrigação combater os selvagens em Araucanía, é tua obrigação proteger a fazenda e esta gente». In Isabel Allende, Inês da Minha Alma, 2006, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-004-749-6.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Isabel Allende, Literatura, Cultura, Chile,