terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «Seres em mudanças, atravessando o passeio, agitados até pararem junto a um veículo, onde arrumavam os pertences enquanto davam instruções apressadas aos familiares»

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Paris, 4 de Junho de 1940

«(…) Nessa manhã, enquanto tomava o pequeno-almoço, na cozinha, Carol notou a enorme agitação das noviças, que cochichavam pelos cantos e lançavam olhares alarmados aos armários. Como madre Mary já lhe explicara a causa do alarido, bebeu o leite, agarrou numa baguete, barrou o interior com manteiga e saiu a trote, a caminho da porta da residencial. No pátio, montou na Hirondelle, depois de envolver os livros numa cinta protectora e de os pousar no cesto, à frente do guiador. Começou a pedalar e avançou para o Boulevard Saint-Germain, onde virou à direita, na direcção da universidade, constatando rapidamente que algo de anormal se passava em Paris. Parecia Julho, mês em que a maioria da população rumava às províncias para passar o verão. Num dia habitual, a cidade tinha muito movimento. Carros, motos, bicicletas, carroças puxadas por cavalos, pequenos e grandes autocarros circulavam nas principais ruas e avenidas, enquanto nos passeios centenas de pessoas entravam e saíam das lojas, dos bistrôs, das boulangeries ou das pharmacies.

No entanto, hoje o que via era gente a carregar os carros com malas, baús, sacos e caixotes. Seres em mudanças, atravessando o passeio, agitados até pararem junto a um veículo, onde arrumavam os pertences enquanto davam instruções apressadas aos familiares. Homens e mulheres, rapazinhos de calções ou meninas de saiotes, idosos cautelosos e muitas empregadas corriam de volta até à porta de casa, como se tivessem esquecido de algo essencial, observados pelas espantadas porteiras dos prédios, de mãos enfiadas nos bolsos das batas.  Carol começou a pedalar mais depressa na Hirondelle, com uma certeza incómoda a assentar no seu espírito: Paris ia debandar em manada. Os habitantes tinham escutado o cair das bombas nocturnas e já conheciam o desfecho lamentável da batalha de Dunquerque. Uma desconfiança visceral atingira-os, o terror dos panzers tornara-se insuportável e a cidade entrara em pânico. Horas depois de madre Mary, milhões já sabiam que a força militar francesa desmoronara-se e que o seu pouco respeitado Governo era um tigre de papel. A França ia ajoelhar em breve, talvez a Linha Maginot ainda resistisse uns dias, mas o desfecho da guerra estava traçado. Quando Carol chegou à Sorbonne, não viu as habituais centenas de estudantes em grupos, à roda dos bancos, trocando piadas. Só um ou outro rapaz de cabeça baixa se afastava, com um ar ensimesmado. Parecia domingo de manhã, quando os universitários curavam a ressaca.

Mas ela tinha de entregar um ensaio sobre a Odisseia. Homero, o autor clássico que mais admirava, fora a sua escolha. Fascinara-a a longa viagem de Ulisses e a paciente sabedoria de Penélope, bem como a mitologia fantástica que percorria a narrativa. Como lhe saíra bem o texto, estava confiante, embora o seu francês escrito não possuísse ainda a precisão e a riqueza a que aspirava. Depois de encostar a Hirondelle à parede, entrou pela porta principal do colégio, dirigindo-se aos gabinetes dos professores, no primeiro andar, onde contava encontrar não só alguns colegas de turma, pois todos tinham de apresentar os trabalhos, mas sobretudo o seu professor de literatura grega, monsieur Sautierre, uma autoridade indisputada naquela área de estudos. Com sessenta e tal anos, o lente francês escrevia grego desde os sete e garantia conhecer todos os filósofos na intimidade. Sócrates, Platão, Aristóteles, Xenofonte, durmo na cama com eles há sessenta anos!, dizia, encantando os alunos com a sua retórica enleante e elegante. Porém, não estava no seu gabinete, nem havia à sua porta qualquer estudante ansioso. Eram onze da manhã, o que se passaria? Durante a hora seguinte, a minha prima esperou a chegada do eminente especialista na Grécia Antiga, mas este não deu sinal de vida. Apenas por lá passou um colega cuja cara lhe era vagamente familiar, mas que rapidamente lhe virou costas. Então, pouco depois do meio-dia, desistiu e caminhou para a saída com lentidão desmotivada. A sua Paris, onde era tão feliz, desmoronava-se. Uma noite de bombas nos arredores e uma saraivada matinal de más notícias tornaram possível o impensável.

Ainda no hall, cruzou-se finalmente com alguém que estimava, Max Katzenberg, um senhor barbudo e de nariz curvo, dos seus sessenta anos e sempre enfiado nuns fatos coçados, exibia um olhar entristecido, que só se iluminava ao falar de música, especialmente de compositores cujo nome começava com a letra B, como Bach, Beethoven ou Brahms. Contudo, em Paris não era professor de música, mas sim de literatura germânica, uma matéria que não dominava e que lhe fora entregue por favor, pois era judeu. Chegado à pressa dois anos antes, vindo da Alemanha e em fuga às perseguições nazis, a universidade sugerira-lhe aquela cadeira para leccionar pagando-lhe uns raquíticos cobres. Para compor os rendimentos, trabalhava à tarde numa loja de música perto da Residencial de Saint-Sulpice, onde tentava vender violinos, pianos ou flautas». In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT

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