Crónicas de dona Inés Suárez, entregues à Igreja dos Dominicanos para sua conservação e resguardo pela sua filha, dona Isabel de Quiroga, no mês de Dezembro do ano de Nosso Senhor de 1580. Santiago da Nova Extremadura. Reino do Chile.
«(…)
A verdadeira razão pela qual decidiu partir sozinho é que não queria deixar-me
assistir ao triste espectáculo da sua doença, já que preferia ser recordado a
montar a cavalo, comandando os seus corajosos homens, combatendo na região
sagrada a sul do rio Bío-Bío, onde as ferozes hostes mapuche se
preparavam então para a guerra. Estava no seu pleno direito de capitão, por
isso aceitei as suas ordens como a esposa submissa que nunca fui. Levaram-no
até ao campo de batalha numa maca e, uma vez lá chegado o seu genro, Martin
Ruiz Gamboa, amarrou-o ao cavalo, tal como fizeram com El Cid, o Campeador,
para assustar o inimigo com a sua presença. Lançou-se para a frente dos seus
homens como um perfeito demente, desafiando o perigo e com o meu nome nos
lábios, só que não encontrou a tão desejada morte. Trouxeram-mo de volta muito
doente, num catre improvisado; o veneno do tumor já tinha invadido o seu corpo.
Qualquer outro homem já teria morrido há muito, devido aos malefícios que a
doença lhe provocara e ao cansaço da guerra, mas Rodrigo era forte. Amei-te
desde o primeiro momento em que te vi e vou amar-te para sempre, Inés,
disse-me, no meio da sua agonia, acrescentando que queria ser enterrado sem
grande alarido e que devíamos mandar rezar trinta missas pelo descanso da sua
alma. Vi a Morte, um pouco desfocada, tal como vejo as letras desta folha, mas
inconfundível. Então chamei-te, Isabel, para que me ajudasses a vesti-lo, uma
vez que Rodrigo era demasiado orgulhoso para mostrar os destroços da sua doença
às criadas. Só a ti, sua filha, e a mim, nos permitiu colocar-lhe a armadura
completa e as botas de rebites. Depois, sentámo-lo no seu cadeirão favorito,
com o elmo e a espada sobre os joelhos, para que pudesse receber os últimos
sacramentos e partir com dignidade, tal como tinha vivido. A Morte, que não
tinha saído do seu lado e aguardava discretamente que acabássemos de o
preparar, envolveu-o então nos seus braços maternais e fez-me sinal para que me
aproximasse e sentisse o último suspiro do meu marido. Inclinei-me sobre o seu
corpo e dei-lhe um beijo na boca, um beijo de amante. Morreu nesta casa, nos
meus braços, numa tarde quente de Verão.
Não
pude cumprir as instruções de Rodrigo para que o seu funeral fosse discreto,
porque era o homem mais querido e respeitado do Chile. A cidade de Santiago
mobilizou-se inteira para chorar a sua morte e, de outras cidades do reino,
chegaram incontáveis manifestações de pesar. Anos antes, o povo tinha saído
para as ruas para celebrar a sua nomeação como governador com chuvas de flores
e salvas de mosquete. Foi sepultado com as honras que merecia na Igreja de
Nossa Senhora das Mercês, que ele e eu mandáramos erigir para glorificar a
Virgem Santíssima e onde em breve repousarão também os meus ossos. Deixei
dinheiro suficiente à igreja para que uma vez por semana, durante trezentos
anos, rezem uma missa pelo descanso da alma do nobre fidalgo don Rodrigo
Quiroga, bravo soldado de Espanha, alcaide, Adelantado (Designação arcaica
utilizada pelos Conquistadores espanhóis durante os séculos XVI e XVII para a
categoria de governador ou responsável máximo de uma província, cuja
responsabilidade seria, entre outras, agir como representante da Coroa espanhola
junto das colónias. (N. da T.) e duas vezes Governador do Reino do Chile,
Cavaleiro da Ordem de Santiago, meu marido. Estes meses sem ele foram uma
eternidade.
Não
devo antecipar-me, pois, se narrar os feitos que recheiam a minha vida sem
qualquer rigor nem ordem, corro o risco de me perder pelo caminho; uma crónica
deve seguir a ordem natural dos acontecimentos, mesmo que a memória seja uma
perfeita barafunda sem lógica. Escrevo de noite, sobre a mesa de trabalho de
Rodrigo, enrolada na sua manta de alpaca. A guardar-me o quarto está Baltasar,
bisneto do cão que viajou comigo até ao Chile e me acompanhou durante catorze
anos. O primeiro Baltasar morreu em 1553, o mesmo ano em que mataram Valdivia,
mas deixou-me os seus descendentes, todos enormes, de patas desajeitadas e pêlo
rijo. Esta casa é fria, apesar das carpetes, cortinas, tapeçarias e braseiros
que os criados mantêm cheios de carvão incandescente. Queixas-te muitas vezes,
Isabel, que não se consegue respirar de tanto calor; deve ser porque o frio não
está verdadeiramente no ar, mas dentro de mim. Consigo anotar as minhas
memórias e pensamentos com tinta e papel graças ao clérigo Gonzalez Marmolejo,
que se deu ao trabalho, entre os seus múltiplos esforços para evangelizar
selvagens e consolar cristãos, de me ensinar a ler. Na altura, era apenas um
capelão, mas chegou a ser o primeiro bispo do Chile e também o homem mais rico
deste reino, como contarei mais adiante. Morreu sem levar nada para a cova, mas
deixou um rasto de boas acções que lhe valeram o amor da população. Ao fim e ao
cabo, só se tem verdadeiramente aquilo que se deu, como dizia Rodrigo, o mais
generoso dos homens.
Comecemos
pelo princípio, pelas minhas primeiras memórias. Nasci em Plasencia, no Norte
da Extremadura, cidade fronteiriça, guerreira e religiosa. A casa do meu avô,
onde cresci, ficava a um passo da catedral, a que carinhosamente chamavam de La
Vieja, uma vez que datava apenas do século XIV. Cresci à sombra da sua torre
invulgar coberta de escamas trabalhadas. Nunca mais vi a ampla muralha que
protege a cidade, a esplanada da Plaza Mayor, as suas ruelas sombrias, os
palacetes de pedra e as galerias de arcos, nem o pequeno solar do meu avô onde
ainda vivem os netos da minha irmã mais velha. O meu avô, um artesão que
trabalhava o ébano, pertencia à Confraria de Vera Cruz, uma honra muito
superior à sua condição social. Sedeada no convento mais antigo da cidade, essa
confraria encabeça as procissões da Semana Santa. Vestido com o hábito roxo,
cinto amarelo e luvas brancas, era um dos que levavam a Santa Cruz. Na sua
túnica havia manchas de sangue, sangue dos chicotes com que se flagelava para
partilhar do sofrimento de Cristo a caminho do Gólgota». In Isabel Allende, Inês da Minha
Alma, 2006, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-004-749-6.
Cortesia de PortoE/JDACT
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