segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Não seria mais prudente lhe dizer que eu iria viajar em vez de sair de fininho daquele jeito? Ai, droga, falei, conferindo o relógio. Temos de ir, sério»

Cortesia de wikipedia e jdact

Norte de África

«(…) Quem me dera eu entendesse, murmurou Mirina. A julgar pela aparência, os pescadores eram o pai e dois filhos adultos. Não pareciam do tipo que se deixava abalar com facilidade. Eu acho... O barco então balançou e os rapazes na mesma hora estenderam a mão para amparar o pai. Mirina viu os três olharem nervosos para a água e entendeu, por fim, o motivo de seu alarme. Uma forma comprida e malhada rodeava o barco, deslizando o imenso corpo pela água barrenta. Seria um peixe grande? Mas ela não viu nem cabeça nem cauda, somente um corpo interminável da mesma grossura de um ser humano. Era uma cobra gigantesca. O que houve?, ganiu Lilli, sentindo a súbita tensão. Me diga! Mirina mal conseguia falar. Já tinha visto cobras grandes, claro, mas nunca algo como aquilo. Ah, nada, conseguiu articular, enfim. Só umas algas presas no casco. Após alguns segundos de aflição, a cobra pareceu perder interesse pelo barco, e os homens relaxaram e recomeçaram a conversar. Verificaram mais algumas armadilhas, mas a pescaria foi magra: apenas uma dúzia de peixes e um par de enguias. Apesar disso, eles pareciam animados ao recolher as varas e, a duras penas, começar a impulsionar o barco para a frente com movimentos curtos e ritmados. Para onde estamos indo?, sussurrou Lilli, trémula de cansaço. Mirina puxou a cabeça da irmã para junto do peito e afagou o seu rosto sujo de lama. Para a cidade grande, leoazinha. A Deusa da Lua está nos esperando, lembras-te?

Aurora

Se o dr. Ludwig ficou surpreso ao me ver sentada junto ao portão de embarque, folheando com gestos casuais uma revista de bordo abandonada, não demonstrou nada. Apenas meneou a cabeça como se minha presença já fosse esperada e ofereceu: café? Assim que ele se afastou, relaxei de alívio e exaustão. Por mais calma que aparentasse estar, as últimas horas sem dúvida tinham sido as mais agitadas da minha vida, e eu não havia parado sequer para respirar depois de encontrar o caderno da avó no sótão. Por sorte, meu pai havia-se mostrado muito disposto a uma pequena aventura e insistira em me levar até ao aeroporto. Mas confesso que estou um tanto curioso, dissera ele, de modo sensato, durante a nossa curta paragem em frente à minha faculdade em Oxford, enquanto eu lutava para enfiar no banco de trás do Mini a mala feita às pressas.

É só por uma ou duas noites, respondi, sentando-me no banco do passageiro e ajeitando meu rabo-de-cavalo. Talvez três. O motor continuava ligado e meu pai ainda segurava o volante, mas o carro não andou. E as aulas que precisa dar? Eu me remexi no banco, incomodada. Antes que o senhor perceba, eu já vou ter voltado. É uma viagem de pesquisa. Na verdade, uma pessoa está pagando-me para ir a Amsterdão... Imagino que o seu benfeitor não seja o jovem Moselane..., sugeriu meu pai, olhando pelo retrovisor. Quando me virei, vi James saindo da faculdade com uma raquete de tênis no ombro. Um calor repentino e nada agradável tomou conta do meu corpo. Ali estava ele, a sensatez em pessoa, lindo como nunca. Não seria mais prudente lhe dizer que eu iria viajar em vez de sair de fininho daquele jeito? Ai, droga, falei, conferindo o relógio. Temos de ir, sério. Meu pai continuou a olhar pelo retrovisor enquanto avançávamos pela Merton Street, decerto perguntando-se como contar à minha mãe sobre aquela agourenta mudança de cenário, e cada tremor de sua pálpebra fazia aumentar o bolo de culpa que eu sentia no estômago. Mas como lhe poderia contar a verdade? Ele nunca havia tomado qualquer iniciativa de conversar sobre a avó, nunca me contara sobre o caderno que ela claramente escrevera para mim. Abordar o assunto agora, a caminho do aeroporto, a uma velocidade para ele supersónica, não era uma ideia nada boa. Desculpe, pai, murmurei, afagando seu braço. Na volta eu explico.

Passamos algum tempo em silêncio dentro do carro. Com o rabo do olho, pude notar a preocupação paterna cada vez maior lutando contra a sua boa índole, que tanto resistia a confrontos. No final ele respirou fundo e disse: só me prometa que isso não é alguma espécie de..., fuga amorosa. Ele teve de levantar um pouco a voz para pronunciar a palavra. Nós temos dinheiro de sobra para pagar uma festa de casamento, sabes. Fiquei tão chocada que desatei a rir. Pai, sério! Bom, o que quer que eu pense? Curvado sobre o volante, ele parecia quase zangado. Passa três horas em casa, pergunta sobre a sua certidão de nascimento..., e agora vai viajar para Amsterdão. Ele me lançou um olhar, e na sua expressão pude ver uma centelha de medo genuíno. Prometa que isso não tem a ver com nenhum..., homem. Sua mãe jamais me iria perdoar. Ah, pai! Inclinei-me para lhe dar um beijo na bochecha. O senhor sabe que eu jamais faria isso. Não sabe? Ele assentiu sem convicção, e acho que eu não podia culpá-lo. Embora fosse raro o assunto vir à baila, eu não tinha dúvidas de que meus pais haviam deduzido bastante coisa em relação ao meu grupo bastante heterogéneo de ex-namorados, aos quais Rebecca se referia como cavaleiros do Apocalipse, embora nenhum deles merecesse título tão nobre». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT

Anne Fortier, JDACT, Literatura,