Norte de África
«(…) Quem me dera eu entendesse,
murmurou Mirina. A julgar pela aparência, os pescadores eram o pai e dois
filhos adultos. Não pareciam do tipo que se deixava abalar com facilidade. Eu
acho... O barco então balançou e os rapazes na mesma hora estenderam a mão para
amparar o pai. Mirina viu os três olharem nervosos para a água e entendeu, por fim,
o motivo de seu alarme. Uma forma comprida e malhada rodeava o barco,
deslizando o imenso corpo pela água barrenta. Seria um peixe grande? Mas ela
não viu nem cabeça nem cauda, somente um corpo interminável da mesma grossura
de um ser humano. Era uma cobra gigantesca. O que houve?, ganiu Lilli, sentindo
a súbita tensão. Me diga! Mirina mal conseguia falar. Já tinha visto cobras
grandes, claro, mas nunca algo como aquilo. Ah, nada, conseguiu articular,
enfim. Só umas algas presas no casco. Após alguns segundos de aflição, a cobra
pareceu perder interesse pelo barco, e os homens relaxaram e recomeçaram a
conversar. Verificaram mais algumas armadilhas, mas a pescaria foi magra:
apenas uma dúzia de peixes e um par de enguias. Apesar disso, eles pareciam
animados ao recolher as varas e, a duras penas, começar a impulsionar o barco
para a frente com movimentos curtos e ritmados. Para onde estamos indo?,
sussurrou Lilli, trémula de cansaço. Mirina puxou a cabeça da irmã para junto
do peito e afagou o seu rosto sujo de lama. Para a cidade grande, leoazinha. A
Deusa da Lua está nos esperando, lembras-te?
Aurora
Se
o dr. Ludwig ficou surpreso ao me ver sentada junto ao portão de embarque, folheando
com gestos casuais uma revista de bordo abandonada, não demonstrou nada. Apenas
meneou a cabeça como se minha presença já fosse esperada e ofereceu: café? Assim
que ele se afastou, relaxei de alívio e exaustão. Por mais calma que aparentasse
estar, as últimas horas sem dúvida tinham sido as mais agitadas da minha vida,
e eu não havia parado sequer para respirar depois de encontrar o caderno da avó
no sótão. Por sorte, meu pai havia-se mostrado muito disposto a uma pequena
aventura e insistira em me levar até ao aeroporto. Mas confesso que estou um
tanto curioso, dissera ele, de modo sensato, durante a nossa curta paragem em
frente à minha faculdade em Oxford, enquanto eu lutava para enfiar no banco de
trás do Mini a mala feita às pressas.
É só por uma ou duas noites,
respondi, sentando-me no banco do passageiro e ajeitando meu rabo-de-cavalo.
Talvez três. O motor continuava ligado e meu pai ainda segurava o volante, mas
o carro não andou. E as aulas que precisa dar? Eu me remexi no banco, incomodada.
Antes que o senhor perceba, eu já vou ter voltado. É uma viagem de pesquisa. Na
verdade, uma pessoa está pagando-me para ir a Amsterdão... Imagino que o seu
benfeitor não seja o jovem Moselane..., sugeriu meu pai, olhando pelo
retrovisor. Quando me virei, vi James saindo da faculdade com uma raquete de
tênis no ombro. Um calor repentino e nada agradável tomou conta do meu corpo.
Ali estava ele, a sensatez em pessoa, lindo como nunca. Não seria mais prudente
lhe dizer que eu iria viajar em vez de sair de fininho daquele jeito? Ai, droga,
falei, conferindo o relógio. Temos de ir, sério. Meu pai continuou a olhar pelo
retrovisor enquanto avançávamos pela Merton Street, decerto perguntando-se como
contar à minha mãe sobre aquela agourenta mudança de cenário, e cada tremor de
sua pálpebra fazia aumentar o bolo de culpa que eu sentia no estômago. Mas como
lhe poderia contar a verdade? Ele nunca havia tomado qualquer iniciativa de
conversar sobre a avó, nunca me contara sobre o caderno que ela claramente escrevera
para mim. Abordar o assunto agora, a caminho do aeroporto, a uma velocidade
para ele supersónica, não era uma ideia nada boa. Desculpe, pai, murmurei,
afagando seu braço. Na volta eu explico.
Passamos
algum tempo em silêncio dentro do carro. Com o rabo do olho, pude notar a
preocupação paterna cada vez maior lutando contra a sua boa índole, que tanto
resistia a confrontos. No final ele respirou fundo e disse: só me prometa que
isso não é alguma espécie de..., fuga amorosa. Ele teve de levantar um pouco a
voz para pronunciar a palavra. Nós temos dinheiro de sobra para pagar uma festa
de casamento, sabes. Fiquei tão chocada que desatei a rir. Pai, sério! Bom, o
que quer que eu pense? Curvado sobre o volante, ele parecia quase zangado. Passa
três horas em casa, pergunta sobre a sua certidão de nascimento..., e agora vai
viajar para Amsterdão. Ele me lançou um olhar, e na sua expressão pude ver uma
centelha de medo genuíno. Prometa que isso não tem a ver com nenhum..., homem.
Sua mãe jamais me iria perdoar. Ah, pai! Inclinei-me para lhe dar um beijo na
bochecha. O senhor sabe que eu jamais faria isso. Não sabe? Ele assentiu sem
convicção, e acho que eu não podia culpá-lo. Embora fosse raro o assunto vir à
baila, eu não tinha dúvidas de que meus pais haviam deduzido bastante coisa em
relação ao meu grupo bastante heterogéneo de ex-namorados, aos quais Rebecca se
referia como cavaleiros do Apocalipse, embora nenhum deles merecesse título tão
nobre». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN
978-858-041-543-0.
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