O Primeiro Filho.
Toledo.
Castela. 23 de Agosto de 1489.
Um
Judeu Cristão
«(…) Pouco depois ouvia o barulho
de ovelhas e se deparou com um grande rebanho deixando o capim ainda mais
rente. Vinha tocado por um homem idoso que ele conhecia, Diego Díaz. O pastor
tinha uma grande família, quase tão extensa quanto o rebanho, e Espina já tratara
de alguns parentes dele. Uma boa tarde, senhor Bernardo. Uma boa tarde, senhor
Diego, disse Espina, desmontando. Deixou o cavalo beliscar o capim com as
ovelhas e ficou alguns minutos falando do tempo com o pastor. De repente perguntou:
Diego, você conhece um rapaz chamado Meir, filho de Helkias, o judeu? Sim,
senhor. Sobrinho de Aron Toledano, o queijeiro, não é? Sim. Quando o viu pela última
vez? Anteontem, cedo. Ele estava fora, entregando queijos para o tio, e acabou-me
vendendo por um soldo um queijo de cabra que foi minha refeição naquela manhã.
Tive pena de não ter comprado dois queijos daqueles.
Olhou de relance para Espina. Porque
está atrás dele? O que ele fez de errado, o garoto? Nada. Absolutamente nada. Também
acho que não deve ter feito. É um bom merdi…, aquele menino judeu. Viu mais
alguém nas redondezas ontem à noite? Espina perguntou e o pastor disse que não
muito depois da partida do garoto passaram dois homens a cavalo, quase o
derrubando, mas sem gritar com ele nem conversar entre si. Dois cavaleiros, disse?
Sabia que podia contar com uma informação precisa. O pastor os encontrara de
perto, feliz por ver cavaleiros nocturnos armados seguirem em frente sem levar
um ou dois cordeiros. A lua estava alta no céu. Pude ver um homem armado,
certamente um cavaleiro pois vestia uma malha fina. E um padre, ou monge, não
reparei na cor do hábito. Ele hesitou. O padre tinha o rosto de um santo.
Com que santo ele se parecia? Nenhum
santo em particular, o pastor disse, aborrecido. Quis dizer que ele tinha um
belo rosto, como se tocado por Deus. Uma expressão sagrada, concluiu. Diego
resmungou e correu para pôr o cachorro no rasto de quatro ovelhas que se
afastavam do rebanho. Estranho, Bernardo pensou. Um rosto tocado por Deus? Ele
pegou seu cavalo e montou. Fique com Cristo, senhor Díaz, disse Bernardo
segurando o cavalo para montar. O velho atirou-lhe um olhar sarcástico. Que
Cristo fique também consigo, senhor Espina, disse. A curta distância do rebanho
que procurava pastar no resto de capim, a terra se tornava mais fértil, menos
ressecada. Bernardo passou por vinhedos e campos de lavoura. No campo adjacente
ao olival do mosteiro, parou e desmontou, amarrando as rédeas da égua num arbusto.
O relvado estava pisado, esmagado por cascos. O número de cavalos vistos pelo
pastor, dois, parecia combinar com o montante da desordem. Alguém ficara a par
da encomenda do ourives. Ficara também sabendo que Helkias estava quase
acabando o trabalho. Por isso teria vigiado a sua casa, à espera do dia da
entrega. O ataque fora ali.
Os gritos de Meir não teriam sido
ouvidos. O olival arrendado pelo mosteiro era um campo aberto e desabitado,
distante uma longa caminhada da comunidade religiosa. Sangue. Ali o garoto
recebia o corte no lado, de uma das lanças. Ao longo daquela trilha de relva
pisada, pela qual Bernardo lentamente avançava, os cavaleiros tinham perseguido
a cavalo Meir ben Helkias, encurralando-o como uma raposa e infligindo os
ferimentos nas suas costas. Aqui tinham pegado a sacola de couro e seu conteúdo.
Pouco à frente, cheios de formigas, havia dois queijos brancos do tipo descrito
por Diego, os pretextos do jovem portador para estar fora de casa. Um dos
queijos achava-se intacto, o outro estava quebrado e achatado no meio como se
atingido por um grande casco. De lá haviam feito o rapaz sair da trilha, rumo à
gleba cheia de oliveiras. E um deles ou os dois o agarraram. Por fim, a
garganta foi cortada. Bernardo sentiu-se atordoado e deprimido. Não estava tão
longe da sua juventude de judeu para ter esquecido o medo, a apreensão ao ver
estranhos armados, a percepção do terror ante todo o mal que já fora feito
antes. Também não estava tão longe de sua maturidade como judeu para deixar de
sentir essas coisas.
Por
um longo tempo, transformou-se mentalmente no garoto. Ouviu os homens. Sentiu o
cheiro. Sentiu as gigantescas e sinistras formas na noite, os enormes cavalos
avançando contra ele, chegando perto dele no escuro. A cruel investida das lâminas
afiadas. O estupro. De novo médico, Bernardo tremeu sob o sol poente e virou-se
cegamente para a égua, escapando dali. Não acreditava que pudesse ouvir a alma
de Meir ben Helkias gritando, mas não tinha vontade nenhuma de estar naquele
lugar quando a escuridão que se aproximava finalmente chegasse». In
Noah Gordon, O Último Judeu, 2000, Uma História de Terror na Inquisição,
Editora Rocco, 2000, ISBN 978-853-251-171-6.
Cortesia de ERocco/JDACT
JDACT, Literatura, Século XV, Noah Gordon, Judeus, Escrita,