O Primeiro Filho.
Toledo.
Castela. 23 de Agosto de 1489.
Um
Judeu Cristão
«(…) O prior era o mais perigoso
dos seres humanos, um sábio, mas ao mesmo tempo um tolo, Bernardo Espina dizia
irritado para si mesmo enquanto se afastava. Ele sabia que era o menos indicado
para descobrir qualquer coisa de judeus ou cristãos, pois era desprezado pelos
membros de ambas as religiões. Bernardo sabia a história da família Espina.
Segundo a lenda, o primeiro ancestral a se estabelecer na Península Ibérica
fora um sacerdote do templo de Salomão. Os Espina e outros tinham sobrevivido
sob os reis visigodos e sob conquistadores ora mouros, ora cristãos. Conforme
as instruções dos seus rabinos, tinham sempre seguido escrupulosamente as leis
da monarquia e da nação. Os judeus haviam conseguido chegar aos mais altos
estratos da sociedade espanhola. Tinham servido aos reis como vizires e prosperado
como médicos e diplomatas, agiotas e financistas, colectores de impostos e
comerciantes, agricultores e artesãos. Ao mesmo tempo, quase em cada geração,
foram massacrados por turbas passiva ou activamente encorajadas pela Igreja. Os
judeus são perigosos e influentes, induzindo à dúvida os bons cristãos, dissera
severamente a Bernardo o padre que o convertera.
Durante séculos, os dominicanos e
os franciscanos tinham manobrado as classes mais baixas (que chamavam de Pueblo
menudo, arraia miúda), de vez em quando atiçando-as para um implacável ódio aos
judeus. Desde os assassinatos em massa de 1391 (cinquenta mil judeus
massacrados!), uma conversão em massa, sem paralelo na história judaica, levou
centenas de milhares a aceitarem Cristo, alguns para salvar a vida, outros para
não perder suas carreiras numa sociedade anti-semita. Alguns, como Espina,
tinham realmente admitido Jesus de coração; muitos, no entanto, formalmente
católicos, continuaram a cultuar secretamente o Deus do Velho Testamento. Na
realidade eram tantos que, em 1478, o papa Sisto IV aprovou o estabelecimento
de uma Comissão para destruir católicos apóstatas.
Espina tinha ouvido alguns judeus
chamar os convertidos de los marranos, isto é, os porcos, afirmando que
estavam eternamente condenados e não ressuscitariam no Dia do Juízo. Com mais
caridade, outros chamavam os apóstatas de anusim, os forçados,
insistindo que o Senhor perdoava os que estavam sendo coagidos, pois entendia
sua necessidade de sobrevivência. Espina não estava entre os coagidos. De
início, como menino judeu, ficara curioso a respeito de Jesus, aquela figura na
cruz que via pelas portas abertas da catedral e a quem o pai e os outros às
vezes se referiam como o pendurado. Quando procurava mitigar o sofrimento
humano como jovem médico aprendiz, ele se deixou comover pelo sofrimento do
Cristo; aos poucos, esse interesse inicial foi-se transformando numa fé, numa
convicção ardente e, por fim, na ânsia de atingir uma pureza pessoal cristã, um
estado de graça.
Uma
vez comprometido, apaixonou-se pela divindade. Um sentimento muito mais forte
que o amor eventual de uma pessoa simplesmente nascida dentro da cristandade. A
paixão de Saulo de Tarso por Jesus não teria sido mais poderosa que a sua: inabalável,
convicta, mais absorvente que qualquer anseio de um homem por uma mulher. Tinha
procurado e recebido a conversão para o catolicismo aos vinte e dois anos, um
ano após se tornar médico habilitado. Sua família entrara de luto, rezando o kadish,
como se ele tivesse morrido. O pai, Jacob Espina, que fora tão cheio de orgulho
e amor, passara por ele na praça sem responder a seu cumprimento, como se nem o
conhecesse. Nessa época, Jacob Espina estava no último ano de vida. E já fora
enterrado há uma semana quando Bernardo soube da sua morte. Espina ofereceu uma
novena pela alma, mas não pôde resistir à tentação de rezar também o kadish,
chorando sozinho enquanto recitava no quarto, sem a confortadora presença do
rabino, a oração fúnebre». In Noah Gordon, O Último Judeu, 2000, Uma
História de Terror na Inquisição, Editora Rocco, 2000, ISBN 978-853-251-171-6.
Cortesia de ERocco/JDACT
JDACT, Literatura, Século XV, Noah Gordon, Judeus, Escrita,