Paris, 4 de Junho de 1940
«(…) Quase todos os dias, ao regressar das aulas, Carol passava em
frente à montra repleta de instrumentos, e o professor Katzenberg acenava-lhe
com a batuta. Certa vez, ouvira pacientemente a triste história dele, a mulher
morrera cinco anos antes, de uma pneumonia, sorrindo sempre que o solitário
homem lhe dizia estar à procura de noiva em Paris, que, segundo Katzenberg, era
a cidade certa para a encontrar. Caroline, onde vai?, perguntou o professor. Ela
hesitou, como se não soubesse a direcção a tomar depois daquela frustrante espera.
A universidade estava vazia, não conseguira entregar o trabalho e em Paris
nascia um caos. É a palavra certa, concordou Katzenberg. Pesaroso, recordou os
massacres a que assistira na Alemanha, durante a tenebrosa Noite de Cristal. Os
nazis eram uma máquina poderosa de medo e destruição, o povo de Paris estava a
fazer a coisa certa, fugir deles. Também me vou embora. Vão perseguir as
pessoas como eu. Comprara um bilhete de comboio para Bordéus e partiria ao
final da tarde, até já fizera a sua pequena mala, não tinha muito para levar.
Quando lá chegasse, pensava no futuro, talvez pudesse ser professor numa
escola. Só tenho pena de uma coisa…, afirmou tristemente. Já não será em Paris
que vou encontrar noiva!
Quando
a minha prima lhe disse que iria com as freiras do Saint-Sulpice para Clermont-Ferrand,
onde esperaria o fim da guerra, ele avisou, coçando a barba: não será assim tão
rápido, depois, esboçou um sorriso. Noutra vida, a Caroline seria a minha
noiva! Ela despediu-se, constrangida, acelerando o passo até à porta do colégio.
Mal a atravessou, o seu coração pulou. Um rapaz montava a Hirondelle, como se fosse o proprietário. Carol desatou a correr,
gritando que a bicicleta era dela, não a podia roubar. Fê-lo de forma tão
agressiva que o ousado estudante desmontou e deixou-a cair, afastando-se
assustado, como se um animal perigoso e de grande porte se aproximasse. Estúpido!
gritou-lhe Carol, agarrando com firmeza a Hirondelle.
Em dois anos, ninguém lhe havia tocado, quanto mais tentado roubá-la! O que estava
a acontecer às pessoas naquela cidade? Irritada, deu aos pedais, acalmando-se
ao ouvir os pneus pisarem o saibro, como se o triturassem.
Se
aquela surpresa desagradável não teve consequências, a que se seguiu abalou-a
profundamente. Meia hora depois, estava à porta do prédio onde vivia Jean-Luc,
perto da Place des Vosges, do lado de lá do Sena. Subiu as escadas até ao
segundo andar e tocou à campainha várias vezes, mas ninguém lhe abriu a porta.
O namorado dormia até tarde, teria ido almoçar? Mademoiselle Caroline! Quem a
chamava era a porteira, madame Félix, que atirava olhares de reprovação às suas
visitas namoradeiras. A minha prima desceu, recebendo das mãos dela um
envelope. Surpreendida, abriu-o e desdobrou uma única folha. Jean-Luc
desculpava-se por partir sem se despedir, mas fora para Lyon no comboio da uma
da tarde. Uma súbita raiva subiu-lhe pela alma. O idiota! O cobarde! Fugir
assim, sem falar com ela? Que miserável! Cerrando os dentes, ignorou o cínico
sorriso de madame Félix e saiu». In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos
Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.
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JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris,