quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Depois de o investir de toda a autoridade para o tocante ao cristianismo de Terra Santa, acrescentou-nos grandes ofertas da sua parte e mandou que nos fosse entregue um rico ornamento para as cerimónias…»

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Roma... Veneza... Trento

«(…) Mas eu, reverendíssimo padre, não estou para ir à Terra Santa!, exclamei. Não desejais ir? Por Deus, sim! Quem o não deseja? Também eu gostaria, mas o pastor não deve abandonar as suas ovelhas e este é o meu cuidado de dia e de noite. Logo que possa regresso a Braga. Vós, porém, não tendes rebanho. Podereis ir à Terra Santa. Ireis certamente, não é verdade? Quem dera! Ireis. Tornava eu a sentir que o barco da minha vida era governado por um invisível timoneiro e que me rodeavam pessoas sabedoras da minha identidade. Que espécie de sigilo calaria as suas bocas? Punha-me a seriar os géneros de sigilos que conhecia: o da confissão, o de certas profissões como a do médico e do advogado, o da razão de Estado, certos sigilos morais, casuísticos... E que quereria dizer essa antecipada certeza numa minha peregrinação à Terra Santa?... Dias depois a certeza confirmava-se e de que maneira! Uma viagem que eu tinha por impossível poder para mim alcançar-me chegou em condições de a poder facilmente negociar para outros. O nosso reverendíssimo padre geral, frei Francisco Zamora, nomeara guardião de Monte Síão ao insigne padre frei Bonifácio Aragusa, pregador apostólico e leitor de sagrada Teologia, e havia necessidade de revezar a família de frades que estavam na Terra Santa, como era costume de três em três anos, a fim de que pudessem regressar às suas províncias. Frei Bonifácio, veio à Cúria procurar-me. Era um homem de grande estatura e muito venerável presença e acatamento.

Olhos enormes e formosos. A barba muito comprida e quase toda branca. Conversação delicada e afável, ainda que temeroso quando mostrava gravidade. Amado de quase todos, de muitos temido. Não poucas vezes mais tarde, lembra-me bem, indo ele na rua, ao passar eu surpreendia pessoas que o ficavam a ver exclamando. Oh! Que bel’ fradaço! Insistiu comigo para que aceitasse ser seu companheiro nas diligências que se impunha fazer por conventos franciscanos de Itália para constituir a nova família de frades. Antes, porém, dizia-me ele, iríamos tomar a bênção a Sua Santidade Pio IV, que teria certamente recomendações a fazer-nos. Não lhe iria frei Pantaleão dizer que não, verdade? Frei Bonifácio, respondi eu, não sei a que devo uma tão imerecida atenção e tenho o vosso convite por uma bem particular mercê, como cada uma das muitas que da Divina Majestade tenho recebido. Sua Santidade acolheu-nos com mostras de entranhável amor, deu-nos a sua bênção e, em nos despedindo dele, pôs a mão familiarmente no ombro de frei Bonifácio e recomendou: não era a primeira vez que frei Bonifácio se encarregava da guarda de Monte Sião. Sabia como confiava no saber e experiência, na diplomacia dele para tratar não só com os turcos, que por mal de nossos pecados têm em seu poder aquele chão sagrado, mas também, o que por vezes era ainda mais difícil, com as outras comunidades cristãs que têm assento junto do túmulo de Cristo. Recordava-lhe que não ordenasse cavaleiros do Santo Sepulcro senão a pessoas muito nobres e ilustres.

Depois de o investir de toda a autoridade para o tocante ao cristianismo de Terra Santa, acrescentou-nos grandes ofertas da sua parte e mandou que nos fosse entregue um rico ornamento para as cerimónias solenes da Semana Santa em Jerusalém. A mim fez-me confessor apostólico. Entrava Março de quinhentos e sessenta e dois e a natureza benigna começava a anunciar a Primavera. Não havia tempo a perder. Partimos de Roma e fomos correr algumas províncias franciscanas mais cercãs buscando frades. Não se tornava fácil a escolha, dado o particular teor da missão a que se destinavam. Cumpria que fossem os mais devotos, virtuosos e quietos que se podiam achar. Portanto, sobre o seu feitio e comportamento se fazia secreto exame com que muito se sobrecarregavam as consciências dos prelados locais e padres velhos dos conventos. Fomos assim juntando até cerca de sessenta frades. Dávamos-lhes as obediências para que com elas nos fossem esperar a Veneza, onde se estava preparando a nau dos peregrinos que haviam de ir à Terra Santa. É este um velho costume da Senhoria de Veneza, o de todos os anos mandar aparelhar uma nau das melhores que tem, para, juntamente com ir negociar seus tratos a terras do Oriente, levar também os peregrinos que vão a Jerusalém». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,