Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…) Atracada a tartana, Caridad,
tal como havia sucedido em Cádiz, deteve-se e hesitou na estreitíssima faixa de
terreno que se abria entre a margem do rio e a primeira linha de edifícios de
Triana, alguns deles com os alicerces à mostra pela acção das águas do
Guadalquivir, tal era sua proximidade. Um dos carregadores lhe gritou que se afastasse
para descarregar um grande saco. O grito chamou a atenção do capitão, que
meneou a cabeça lá da borda. Seu olhar cruzou com o do grumete, também atento a
Caridad; ambos conheciam o seu destino. Tens cinco minutos, concedeu a este. O
rapaz agradeceu a permissão com um sorriso, saltou a terra e puxou Caridad. Corre.
Segue-me, urgiu-a. Estava consciente de que o capitão o deixaria em terra se
não se apressasse.
Superaram a primeira linha de
edifícios e chegaram até à igreja de Santa Ana; seguiram afastando-se do rio
mais duas quadras, o grumete nervoso, puxando Caridad, esquivando-se das
pessoas que os observavam estranhando, até se encontrarem diante da Cava. Essas
são as Mínimas, indicou o rapaz apontando uma construção na margem oposta da
Cava. Caridad olhou na direcção que apontava o dedo do grumete: uma construção
baixa, caiada, com uma igreja humilde; depois dirigiu o olhar para o antigo
fosso defensivo que se interpunha no seu caminho, afundado, repleto de lixo em muitos
pontos, precariamente aplanado em outros. Tens alguns lugares para atravessar,
acrescentou o rapaz imaginando o que passava pela cabeça de Caridad, há um em
São Jacinto, mas fica algo afastado. As pessoas atravessam por qualquer lugar,
vês? E apontou para algumas pessoas que desciam ou subiam pelos lados do fosso.
Tenho de voltar à embarcação, advertiu-a ao ver que Caridad não reagia. Sorte,
negra. Caridad não disse nada.
Sorte, repetiu antes de
empreender a volta correndo muito. Uma vez sozinha, Caridad reparou no
convento, o lugar indicado por don Damián. Atravessou o fosso por um caminhinho
aberto entre os montes de lixo. Na veiga não havia lixo, mas em Havana, sim;
tinha tido oportunidade de vê-lo quando o senhor a havia levado à cidade para
entregar as folhas de tabaco ao armazém do porto. Como podiam os brancos jogar
fora tantas coisas? Alcançou o convento e empurrou uma das portas. Fechada.
Bateu. Esperou. Nada aconteceu. Voltou a bater, com timidez, como se não
quisesse incomodar. Assim não, negra, disse-lhe uma mulher que passava a seu
lado e que, quase sem parar, puxou uma corrente que fez soar uma sineta. Pouco
depois se abriu um postigo gradeado numa das portas. A paz do Senhor esteja
contigo, ouviu que dizia a porteira; pela voz, uma mulher já velha. Que é o que
te traz à nossa casa? Caridad tirou o chapéu de palha. Embora não chegasse a ver
a monja, baixou os olhos para o chão. Don Damián me disse que viesse aqui,
sussurrou. Não te entendo. Caridad havia falado rápido, atropeladamente, como
faziam os boçais cubanos ao dirigir-se aos brancos.
Don Damián…, esforçou-se, ele me
disse que viesse aqui. Quem é don Damián?, inquiriu a porteira depois de uns instantes
de silêncio. Don Damián…, o sacerdote da embarcação, d’ A Rainha. A rainha? Que dizes da rainha?!,
exclamou a monja. A Rainha, a embarcação de
Cuba. Ah! Uma embarcação, não sua majestade. Pois…, não sei. Don Damián,
disseste? Espera um momento. Quando o postigo voltou a abrir-se, a voz que
surgiu dele era autoritária, firme. Boa mulher, o que te disse esse sacerdote
que devias fazer aqui? Só me disse que viesse. A monja não voltou a falar senão
depois de alguns segundos. E o fez com voz doce. Somos uma comunidade pobre.
Dedicamo-nos à oração, à abstinência, à contemplação e à penitência, não à
caridade. Que poderias fazer tu aqui? Caridad não respondeu. De onde vens? De
Cuba. És escrava? E teus senhores?
Sou…, sou livre. Além disso, sei
rezar. Don Damián a havia instado a que dissesse isso. Caridad não chegou a ver
o resignado sorriso da monja. Escuta, disse esta: tens de ir à Confraria de
Nossa Senhora dos Anjos, entendes? Caridad permaneceu em silêncio. Para que don
Damián me fez vir aqui?, perguntou-se. A Confraria dos Negritos, explicou a
monja, a tua. Eles te ajudarão…, ou te aconselharão. Escuta: caminha até à igreja
de Nossa Senhora dos Anjos, perto da Cruz do Campo. Segue toda a Cava para o
norte, para São Jacinto. Ali poderás atravessar a Cava, entra à direita e
continua pela rua de Santo Domingo até chegar à ponte de barcos, cruza-a e
depois… Caridad deixou as Mínimas tentando reter na mente o itinerário. Dos
Anjos. Haviam-lhe dito que tinha de ir ali. Dos Anjos. Iriam ajudá-la. Na Cruz
do Campo, recitava em voz baixa. Absorta nos seus pensamentos, caminhou alheia
ao olhar das pessoas: uma negra voluptuosa, vestida com farrapos cinzentos e
segurando uma pequena trouxa, e que não cessava de murmurar. No Altozano,
assombrada diante do monumental castelo de São Jorge no início da ponte, chocou-se
com uma mulher. Tentou desculpar-se, mas as palavras não surgiram; a mulher a
insultou, e Caridad fixou os olhos em Sevilha, na outra margem. Dezenas de
carros e cavalgaduras cruzavam a ponte num sentido ou no outro; a madeira rangia
sobre os barcos. Aonde pensas que vais, negra?» In Ildefonso Falcones,
A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia de BertrandE/JDACT