Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Os meninos gostam de viajar atrás, mas é perigoso, não podem ir sozinhos. Olga
e você tomarão conta deles. Vamos pôr Oliver à frente para não o incomodar, é
ainda um cachorro, mas já tem manhas de animal velho, decidiu Charles Reeves,
fazendo-lhe sinal para subir.
O soldado atirou a mochila para
cima do monte de objectos e trepou, esticou os braços para receber o menino
mais pequeno, que Reeves tinha levantado sobre a cabeça, um puto fraco, de
orelhas saídas e um sorriso irresistível que lhe enchia a cara de dentes. Quando
regressaram a mulher e a menina subiram também para trás, os outros dois
entraram na cabina e pouco depois o camião pôs-se em marcha.
Chamo-me Olga e estes são Judy e
Gregory, apresentou-se a de cabelo impossível, sacudindo a saia enquanto
distribuía maçãs e bolachas. Não se sente sobre essa caixa, ai vai a jibóia, e
não pode tapar-lhe os buracos de ventilação, acrescentou. O pequeno Gregory
parou de tirar a língua de fora logo que deu conta de que o viajante vinha da
guerra, então uma expressão reverente substituiu as caretas brincalhonas e começou
a interrogá-lo sobre aviões de combate, até ficar vencido pela modorra. O
soldado tentou conversar com a ruiva, mas ela respondia com monossílabos e não
se atreveu a insistir. Pôs-se a cantarolar canções da sua aldeia, olhando de
soslaio a caixa misteriosa, até que os outros adormeceram sobre a pilha de
fardos, então pôde observá-los à vontade. Os meninos tinham cabelo quase branco
e os olhos tão claros que de perfil pareciam cegos, em contrapartida a mulher
tinha a cor azeitonada de algumas raças mediterrânicas. Tinha os primeiros botões
de blusa abertos, gotas de suor molhavam-lhe o decote e desciam como um lento
fio pelo rego dos seios. Tinha levantado um braço para apoiar a cabeça sobre um
caixote, revelando velos escuros nas axilas e uma mancha húmida no tecido.
Desviou os olhos, receando ser surpreendido e que ela interpretasse mal a sua
curiosidade, até então aquelas pessoas tinham sido amáveis, pensou, mas nunca
se pode estar seguro com os brancos. Deduziu que os miúdos eram do outro casal,
ainda que a julgar pelas idades aparentes dos Reeves também pudessem ser seus netos.
Passou revista à carga e chegou à conclusão de que aquela gente não estava a mudar
de casa, como tinha suposto a principio, mas que viajavam na sua vivenda
permanente. Notou que levavam um tambor com vários galões de água e outros com
combustível e perguntou a si mesmo como é que conseguiam gasolina, racionada
pela guerra desde há um bom tempo. Tudo estava disposto numa ordem meticulosa,
de fateixas e ganchos penduravam utensílios e ferramentas, compartimentos
exactos continham as maletas, nada ficava solto, cada embrulho estava marcado e
havia várias caixas com livros. O calor e as sacudidelas da viagem depressa o
esgotaram e adormeceu recostado na gaiola dos frangos. Despertou a meio da
tarde, ao sentir que paravam. O corpo do rapaz sobre as suas pernas não pesava
quase nada, mas a imobilidade tinha-lhe entorpecido os músculos e sentia a
garganta seca. Por alguns instantes não soube onde estava, meteu a mão no bolso
das calças à procura do cantil de uísque e bebeu um longo golo para aclarar o
espírito. A mulher e os meninos estavam cobertos de pó e o suor marcava-lhes
linhas pelas bochechas e pelo pescoço. Charles Reeves tinha-se desviado do
caminho e encontravam-se debaixo de um grupo de árvores, única sombra naquela
desolação, acampariam ali para o motor arrefecer, mas no dia seguinte podia levá-lo
a casa, explicou ao soldado, que então estava mais tranquilo, aquela estranha
família começava a inspirar-lhe simpatia. Reeves e Olga baixaram alguns
embrulhos do camião e armaram as estafadas tendas de campanha, enquanto a outra
mulher, que se apresentou como Nora Reeves, preparava a comida num fogareiro a
petróleo com a ajuda da sua filha Judy, e o rapaz procurava paus para uma
fogueira, com o cão atrás dos seus sapatos. Vamos caçar lebres, pai?, suplicou
puxando as calças do pai.
Hoje não há tempo para isso, Greg,
respondeu Charles Reeves tirando um frango da gaiola e rebentando-lhe a nuca
com um esticão firme no pescoço. Não se consegue carne. Guardamos os frangos
para ocasiões especiais..., explicou Nora, como se pedisse desculpas. Hoje é um
dia especial, mãe?, perguntou Judy. Sim, filha, o senhor King Benedict é nosso
convidado. Ao entardecer o acampamento estava pronto, a ave fervia numa panela
e cada qual cumpria a sua tarefa, à luz dos candeeiros de carbureto e ao calor
do fogo: Nora e os rapazes faziam trabalhos escolares, Charles Reeves folheava
uma manuseada cópia do National Geographic e Olga fabricava colares com contas
de cores. São para a boa sorte, disse ao hóspede. E também para a invisibilidade,
disse a menina. Como? Se começa a tornar-se invisível põe um colar destes e
todos podem vê-lo, esclareceu Judy. Não faça caso, são coisas de criança, riu
Nora Reeves. É verdade, mãe! Não contradigas a tua mãe, cortou Charles Reeves
secamente». In Isabel Allende, O Plano Infinito, Edições Inapa, 2010, ISBN
978-989-681-004-7.
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