«Uma
gota de suor descia lentamente pelas minhas costas enquanto eu tentava prestar
atenção na pergunta feita por Dafina. Mantive o meu olhar na menina sentada bem
à minha frente, muito embora o calor e a humidade estivessem roubando a minha
concentração, que deveria estar totalmente voltada à aula. Querida, pode, por
favor, repetir a pergunta?, pedi, com um sorriso encorajador no rosto suado. O
ventilador do tecto não cumpria o seu papel de fazer vento. E, mesmo que fizesse
isso, se limitaria a espalhar ar quente para os lados. Mais nada. Posso ler em
voz alta? Todos os alunos da classe aguardavam ansiosos pela resposta, com os seus
livros abertos na mesma página. Onde a minha cabeça andava, afinal? Claro que
sim. Então a pequena nigeriana, há algum tempo arrebatada pela magia da
leitura, pôs-se a narrar as estripulias de dom Quixote em companhia de seu fiel
amigo e companheiro, Sancho Pança. Olhei para as cabecinhas inclinadas e suspirei
profundamente. Eu conhecia cada uma daquelas crianças o suficiente para saber
que o pouco que conseguia doar a elas significava muito. O que elas não sabiam: a recompensa
maior era o da minha.
Fazia seis meses que eu tinha
partido da Krósvia para a Nigéria, movida pela necessidade de fazer algo
importante para o próximo. Não sei se por influência da minha mãe ou por causa
da genética mesmo, minha tia-avó é uma humanitária de carteira, a vida inteira
senti que não poderia contentar-me com a sorte que tive ao nascer em berço de
ouro e fechar os meus olhos para a realidade ao meu redor. Quis estudar Línguas
na faculdade não porque os professores, na Krósvia, fossem valorizados e muito
bem pagos, mas sim pela possibilidade de ajudar alguém no futuro, de mostrar o
caminho mágico proporcionado pela linguagem. Por isso, ainda no segundo ano de
curso, surgiu a oportunidade que eu tanto esperava. Descobri um grupo de
voluntários dentro da universidade. A cada ano, estudantes de medicina,
odontologia, serviço social, psicologia, entre outros, partem mundo afora, em
missão nas regiões de pobreza extrema. Conhecê-los foi como escutar os gritos
da minha vocação. Eu também queria fazer aquilo, ser um deles, envolver-me. Claro
que, assim que anunciei a minha intenção, houve resistência. Afinal: para os
membros do grupo Universitários sem Fronteiras, eu era apenas a filha da
princesa, ou seja, uma garota mimada e sem propósito.
Os meus pais não queriam que eu
me arriscasse. Portanto, me apresentaram inúmeras alternativas de trabalhos
voluntários nos limites do meu próprio país. Porém, ao acabar de completar 19
anos, eu já sabia exactamente definir o que era bom ou não para mim. Tive de
ser muito persuasiva com os meus colegas de faculdade. Em contrapartida, com
Ana e Alex, fui obrigada a usar todo o acervo de argumentos que eu tinha. No
final, sei que o que os convenceu de verdade foi a garantia de que eu permaneceria
viva e com saúde, não importa onde eu estivesse. Obstáculos vencidos, o passo
seguinte era definir o meu destino. Entre algumas opções, acabaram mandando-me
para um vilarejo ao norte da Nigéria. Minha missão: ensinar inglês às crianças
e apresentá-las, isso mesmo, apresentá-las ao mundo da leitura. Achei que seria
fácil. Mas não. Na comunidade, os pais preferiam colocar os filhos para
trabalhar desde pequenos a garantir a sua educação. Sendo assim, eu e meu grupo
passámos semanas e mais semanas apenas tentando alterar essa realidade. Aos
poucos, fomos obtendo sucesso, embora não completamente. Ainda falta muito até
que possamos dizer: Vitória!
Deixo as recordações de lado ao
avistar um bracinho fino apontado para cima. Fale, Dara. Tia, eu também quero
ler. A Dafina já acabou a parte dela. Sorrio para a linda menina de pele cor de
ébano, prestes a atender o seu pedido, quando Dimitri, o coordenador do nosso
grupo, aparece na porta da sala. Elena, podemos falar num minuto? Caminho até
ele, depois de autorizar Dara a fazer a leitura em voz alta. Para ser bem
sincera, Dimitri é mais que um coordenador para mim. Ele tem 23 anos, cursa
engenharia civil e a sua aparência chamou a minha atenção desde a primeira vez
que o vi. Porém, o que mais me encanta nele são a sua bondade e a forma humana
como ele encara o próximo. Resumindo: a gente tem uma certa química, uma
afinidade clara, apesar de mantermos o nosso relacionamento no nível da amizade.
Aqui, na Nigéria, fica difícil investir em causas pessoais. Trabalhamos muito. Olá,
diz ele, exibindo as covinhas na bochecha quando sorri. Parece que essas
crianças não sabem mais viver sem os seus livros. Diga-me qual é o seu feitiço».
In
Marina Carvalho, Elena, a filha da princesa, Galera Record, 2015, ISBN
978-850-110-492-2.
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