«(…) Parecia nervoso e isso preocupava
Malone. As pessoas desesperadas acabam sempre por cometer actos desesperados. Ponha
a faca no chão. A polícia está a chegar. Não tem por onde fugir. O homem da
faca voltou a olhar para o céu e depois fitou Malone. Viu indecisão no rosto
dele. Que se passava ali? Um ladrão de malas que foge para o topo de uma torre
de trinta metros de altura sem saída? Os passos tornaram-se mais audíveis. A polícia
não tarda a chegar. O homem da faca aproximou-se ainda mais do corrimão, mas
não soltou a mulher. Malone percebeu que a rigidez do ultimato forçava uma decisão
e repetiu-a. Não tem por onde escapar. O ladrão puxou a mulher mais para si e
recuou, encontrando-se agora completamente encostado ao corrimão. Atrás dele e
da sua refém havia agora apenas o vazio. Os olhos perderam a expressão de
pânico e uma súbita calma apoderou-se do homem. Empurrou a mulher para a frente
e Malone apanhou-a antes que ela se desequilibrasse. O homem da faca fez o
sinal da cruz e, com a mala de Stephanie na mão, saltou por cima do corrimão,
gritou uma palavra, beauséant, esfaqueou o pescoço e o seu corpo mergulhou
em direcção à rua. A mulher soltou um grito ao mesmo tempo que a polícia
aparecia. Malone largou-a e precipitou-se para o corrimão. O homem da faca
estava estendido no chão. Caíra de uma altura de trinta metros. Malone abanou a
cabeça.
Voltou-se e olhou para o céu. No
mastro da bandeira no topo do observatório, a Dannebrog, a bandeira nacional da
Dinamarca, uma cruz branca sobre um fundo vermelho, pendia inerte na calma da tarde.
Para onde estaria o homem a olhar? E por que razão teria saltado? Voltou a
olhar lá para baixo e avistou Stephanie a tentar abrir caminho por entre a
multidão que se amontoava. A sua mala de pele estava caída a pouca distância do
cadáver. Malone viu-a baixar-se e apanhá-la do chão, e depois desaparecer por
entre os curiosos. Seguiu-a com o olhar enquanto ela se apressava em direcção a
uma das ruas que dava acesso à movimentada Ströget sem sequer olhar para trás. Abanou
a cabeça em sinal de reprovação e murmurou: mas que raio...
Stephanie estava preocupada Após
vinte e seis anos a trabalhar para o Departamento de Justiça, os últimos quinze
à frente do Magellan Billet, aprendera que se algo tinha quatro patas, tronco e
cheirava a amendoins, então tratava-se de um elefante e não havia necessidade
de pendurar um cartaz ao pescoço do animal. Isso significava que o homem do
casaco vermelho não era nenhum ladrão de malas. Deveria ser qualquer coisa bem
diferente. E isso queria dizer que havia alguém a par dos seus objectivos. Vira
o ladrão mergulhar da torre, a primeira vez que assistira à morte de alguém.
Durante anos escutara os seus agentes falar sobre isso, mas havia uma grande
diferença entre ler um relatório e ver uma pessoa morrer. O corpo abatera-se sobre
a calçada com um som seco. Teria saltado? Teria sido empurrado por Malone? Houvera
luta? Teria ele dito alguma coisa antes da queda? Viera à Dinamarca com um
único objectivo e, uma vez aí, decidira visitar Malone. Há anos ele fora um dos
doze escolhidos para o Magellan Billet. Conhecera o pai de Malone e seguira a
carreira brilhante do filho, tendo ficado muito satisfeita por tê-lo a
trabalhar para ela quando este decidiu aceitar a sua oferta e trocou o JAG (Esquadrão
de Jactos da Marinha) pelo Departamento de Justiça. Com o tempo, acabara por se
tornar um dos seus melhores agentes mas, no ano anterior, decidira deixar o
departamento, decisão que ela ainda lamentava.
Desde então não o voltara a ver,
embora tivessem falado ao telefone umas quantas vezes. Quando ele saiu em
perseguição do ladrão, reparou que continuava um homem musculado e de cabelo
basto e ondulado com o mesmo tom de um ligeiro castanho-avermelhado que
recordava, semelhante à pedra antiga dos edifícios que a rodeavam. Durante os
doze anos que trabalhara para ela, sempre fora decidido e independente, características
que faziam dele um bom operacional, no qual podia confiar, e também não deixava
de ser compassivo. Acabara por se transformar em algo mais do que um mero
funcionário. Era também um amigo. N o entanto, isso não significava que o
quisesse a meter o nariz nos seus assuntos. Perseguir o homem da faca era típico
de Malone, mas era também um problema. Visitá-lo agora iria implicar um
sem-número de perguntas às quais não tinha intenção de responder. O encontro
teria de ficar para uma outra ocasião.
Malone
abandonou a Torre Redonda e seguiu Stephanie. Quando desceu do telhado, os
paramédicos estavam a tratar do casal de idosos. O homem estava meio atordoado
devido à pancada na cabeça, mas iria ficar bem. A esposa continuava histérica.
Ouvira um dos enfermeiros alertar para que fosse transportada para uma
ambulância. O corpo do homem da faca continuava no chão sob um lençol amarelo e
a polícia apressava-se a afastar as pessoas do caminho. Avançando por entre a
multidão, Malone viu o fotógrafo da polícia levantar o lençol e começar a
trabalhar. O ladrão cortara mesmo a garganta. A faca ensanguentada estava caída
a poucos metros de um dos braços, contorcido num ângulo estranho. O sangue
escorrera da ferida do pescoço e acumulara-se num poça escura. O crânio estava
rachado, o tronco esmagado e as pernas torcidas como se não tivessem ossos. A polícia
dissera a Malone para não abandonar o local, iriam precisar que prestasse
declarações, mas naquele momento era mais importante encontrar Stephanie. Afastou-se
dos curiosos, e olhou o céu da tarde onde o Sol brilhava com fulgor. Não se
avistava uma única nuvem. Iria, sem dúvida, estar uma excelente noite para
observar as estrelas, mas ninguém poderia visitar o observatório no cimo da Torre
Redonda. Não. Estaria fechado, pois um homem acabara de pôr fim à própria vida.
E quem seria esse homem?» In Steve Berry, O Legado dos Templários, 2006,
Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-808-9.
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