sábado, 18 de agosto de 2018

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «Fomos buscar os porcos e descemos ao vale, cautelosamente, porque havia silvas e barrocos, e os animais estranhavam a matinada e perdiam-se facilmente»

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E Também aqueles Dias
«(…) E houve também aqueles dois gloriosos dias em que fui ajuda de pastor, e a noite de permeio, tão gloriosa como os dias. Perdoe-se a quem nasceu no campo, e dele foi levado cedo, esta insistente chamada que vem de longe e traz no seu silencioso apelo uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de cheiros miraculosamente conservados intactos. O mito do paraíso perdido é o da infância, não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faríamos hoje. Eu não o sei. Meus avós tinham decidido, porque a venda dos bácoros havia sido fraca, que o resto das ninhadas seria vendido na feira de Santarém, por melhor preço e sem mais gasto de dinheiro. Porque o caminho seria andado a pé, quatro léguas de campo, a passo de porco pequeno, para que os animais chegassem à feira com sorte de comprador. Perguntaram-me se eu queria ir de ajuda com o tio mais novo, e eu disse que sim, nem que fosse de rastos. Ensebei as botas para a caminhada e escolhi no alpendre o pau que mais jeito dava aos meus doze anos esgalgados. Sempre foram caladas as minhas alegrias, e por isso não soltei os gritos que me estavam no peito, que até hoje não pude deixar sair.
Começámos a jornada a meio da tarde, meu tio atrás, com o cuidado de não deixar perder nenhum bácoro, eu à frente, levando a marrã nos calcanhares. Imaginava-me como uma figura de proa avançando pelas estradas e caminhos como sabia que faziam nos mares os barcos de piratas de que falavam os meus livros de aventuras. Uma vez por outra, meu tio revezava-me e eu tinha de comer o pó que as patinhas miúdas dos animais levantavam do caminho. No meio deles, mãe verdadeira de alguns e emprestada de todos os outros, a marrã conservava-os unidos. Era quase noite fechada quando chegámos à quinta onde ficaríamos para o dia seguinte. Metemos os animais num barracão e comemos o farnel leve, perto de uma janela iluminada, porque não tínhamos querido entrar (ou não nos deixaram?). Enquanto comíamos, veio um criado dizer-nos que poderíamos dormir na cavalariça. Deu-nos duas mantas lobeiras e foi-se embora. Soltaram-se os cães, e nós não tivemos mais remédio que ir dormir. A porta da cavalariça ficaria aberta toda a noite, e assim nos convinha, pois teríamos de sair pela madrugada, muito antes de nascer o sol, para chegarmos a Santarém no principiar da feira.
A nossa cama era um extremo da manjedoura que acompanhava toda a parede do fundo. Os cavalos resfolgavam e davam patadas no chão empedrado, coberto de palha. Deitei -me como num berço, enrolado na manta, respirando o cheiro forte dos cavalos, toda a noite inquietos, ou assim me pareciam nos intervalos do sono. Sentia-me cansado, com os pés moídos. A escuridão era quente e espessa, os cavalos sacudiam as cabeças com força, e o meu tio dormia. Os ruídos da noite passavam por sobre o telhado. Adormeci como um santo: assim minha avó diria se ali estivesse. Acordei quando meu tio me chamou, madrugada alta. Sentei-me na manjedoura e olhei para a porta, com os olhos piscos de sono e deslumbrados por uma luz inesperada. Saltei para o chão e vim ao pátio: na minha frente estava uma lua redonda e enorme, branca, entornando leite sobre a noite e a paisagem. Era tudo branco refulgente onde a lua dava e negro espesso nas sombras. E eu que só tinha doze anos, como já ficou dito, adivinhei que nunca mais veria outra lua assim. Por isso é que hoje me comovem pouco os luares: tenho um dentro de mim que nada pode vencer.
Fomos buscar os porcos e descemos ao vale, cautelosamente, porque havia silvas e barrocos, e os animais estranhavam a matinada e perdiam-se facilmente. Depois tudo se tornou simples. Seguimos ao longo de vinhas maduras, por um caminho coberto de pó que a frescura da noite mantinha rasteiro, e eu saltei ao meio das cepas e colhi dois grandes cachos que meti na blusa enquanto corria os olhos em redor, a ver se o guarda aparecia. Voltei ao caminho e dei um cacho ao meu tio. Fomos andando e comendo os bagos frios e doces, que pareciam cristalizados, de tão duros». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT