«(…) Raquel, concentrada naquilo que lhe contava, perguntou
bruscamente porque lhe revelava isso agora. Ignorei a pergunta nesse instante,
todavia, mais tarde, expliquei-lhe que depois de ter ouvido falar tanto, e tão
mal, do Diabo, decidi que alguém devia combatê-lo. Senti-me investida dessa
missão. Queria salvar o mundo. Toda a gente pensa nisso pelo menos uma vez.
Atalha a minha amiga. Deixa-me contar, Raquel. E ela, dócil, ouvia. O caminho
entre a casa e a escola era bastante longo. Atravessava sozinha, e a pé, um
sítio ermo onde a vegetação crescia subjugada à lei do silvedo. Havia uma
ordem, uma hierarquia neste local. O chão cobria-se de ervas rasteiras que no
início do Verão, antes das férias, atingiam a
minha altura. Depois, havia cardos cujas
flores, rosa pálido, atraíam borboletas e abelhas. Havia olmos gigantes de
troncos largos, abraçados por silvas novas de um verde sinuoso e reluzente,
como pele de serpente, e havia trepadeiras com flores de cor branca ou lilás, e
um silêncio sepulcral que me arrepiava quando o vento se apagava nos negrilhos.
As urtigas bordejavam todo o caminho como sentinelas, trançando uma linha
territorial que não poderia ser atravessada sem perigo. De pernas nuas,
caminhava pelas urtigas como quem caminha pelas águas. Outras vezes, colhia um
molhe de urtigas e ficava a ver o sangue irrigar a pele fustigada pelos açoites
cadenciados que eu própria me infligia. Despia-me para açoitar as costas, o
ventre e as pernas. Apenas zonas que estariam cobertas pela roupa, para não
atrair a atenção. Os pêlos do caule e as folhas desencadeavam uma irritação
avermelhada e uma coceira que devia aguentar. O ardor era intenso, mas
aguentava. A inflamação e as bolhas demoravam a ir-se porque, nos prados e
baldios, o tempo das urtigas era longo. A enfermidade do corpo, submisso à dor,
correspondia ao tempo das urtigas. Ditava-me esta pena como um moral dever e, à
semelhança dos restantes seres vivos, homens, animais e plantas, admitia a dor
como lei universal. Tomava-a como um legado, uma transmissão, uma ordem
irrevogável da natureza para me abrir os olhos, para me obrigar a querer ver os
submundos em redor. A minha força, visto assim, deixara de suportar a minha
fraqueza, fartou-se dela.
Mais tarde, experimentei o fogo. Depressa me familiarizei
com um odor intenso de pele queimada pelos fósforos que roubava na zona da
cozinha. A pele humana carbonizada tem o mesmo cheiro que a pele de porco
contou-me um dia um jornalista que cobriu a guerra nos Balcãs, zona maldita,
onde o Demónio se esconde, dizia ele. Eu conhecia esse cheiro. Daí à
dilaceração da carne, em longos golpes lentos e pouco profundos, foi um passo.
Mal uma ferida cicatrizava recomeçava outra no mesmo local. Ao fim de um certo
tempo, acabei por abandonar o recurso a qualquer objecto, limitava-me a
arrancar as crostas das feridas com as unhas, para que nenhuma tivesse tempo de
sarar. Houve alturas em que tive febre e o meu corpo cheirava a pus.
Afastava-me das pessoas para evitar que dessem por isso. Três anos se passaram
sem que, na família, alguém se apercebesse, notasse ou desconfiasse de algo.
Inadvertidamente, numa dessas sessões de automutilação,
acabei por atingir uma veia. Encontrava-me na casa de banho do colégio cujas
paredes expunham, abertamente, o conteúdo das almas que por lá transitavam. Os
rabiscos, os palavrões, os poemas ao cocó e ao chichi fazem crer, como
Heraclito dizia, que o pior de todos os males seria a morte da palavra. Um
segredo assim, como fizeste para guardá-lo tanto tempo? Era Raquel que se
comovia na pergunta e se imprimia nela de forma desnecessariamente piedosa. Não
sei, não sei Raquel. Deixa-me contar. E ela acenava que sim, cabeceando, sem
produzir qualquer outro som ou ruído. Uma vez transportada do colégio ao
hospital, tudo se descobriu. A freira, professora de português que me tirara da
retrete, alertou os médicos para as cicatrizes do meu corpo. Tinha tentado
antes, mas em vão, extorquir-me qualquer coisa. Nada obteve. Conservei o maior
segredo sobre as práticas de martírio, e acabaram por acusar o meu pai de
tortura e de sevícias, o que não surpreendeu ninguém. Na cidade, toda a gente
conhecia o carácter do velho velhaco. Sobre o que realmente sucedera comigo, o
enigma manteve-se. Nunca souberam a verdade. Deixei que o acusassem. O mal pago
pelo mal constituía a minha vingança. O ódio que em mim o velho sempre
despertara, falou mais alto.
E, agora, vejam bem! A primeira e única experiência como
mártir acabou em vitória para Satanás. Sem pensar, tornara-me uma má pessoa.
Ninguém é mais esperto do que o Diabo, garanto-vos. Digo-vos tudo isto para traçar, diante dos
vossos olhos, o caminho encoberto que me levou a Jean e aos meandros do mal,
que eu julgara bem. Os actos sejam eles quais forem só serão conhecidos pelos
seus efeitos, e quase sempre, como que apiedados de nós mesmos, fazemos por
ignorar as causas das coisas que nos sucedem. Comigo foi assim. Raquel
escutava, e olhava-me como se me visse pela primeira vez. Encorajada pelo seu
silêncio, continuei o relato desse período longínquo. Disse-lhe que o mal
assume múltiplas formas e, pode mesmo, ser dissimulado em boas acções. Quem
nunca conheceu um Diabo com cara de Anjo? Sim, claro, acabo de dizer uma grande
banalidade. Pois, justamente. Falemos de banalidades sem artificialismos. O mal
banalizado deixa de se ver, porque se fez aceitar. Contudo, o mais escabroso e
ingrato, expliquei a Raquel, é o mal pequeno, o mal menor que, praticado em
grande escala, faz de nós seres terríveis, tão terríveis e cruéis como o Sr.
Veneno, a alcunha de um homem que eu conheci, na aldeia da minha avó.
O Sr.Veneno era um camponês, não muito alto, mas largo e
forte, cujo vulto parecia agigantar-se quando se zangava. Vestia todos os dias
a mesma roupa. Uma camisa vermelha de flanela aos quadrados cinzentos sob uma
camisola de lã alaranjada com as mangas grosseiramente cosidas. Tinha a
reputação de ser um homem cruel e avarento, que olhava os outros com olhos de
gula, como se o mundo inteiro lhe devesse qualquer coisa ou tudo o que os
outros possuíam lhe fosse devido. Há pessoas assim. Contava-se que dormia na
horta no tempo das cerejas, para evitar que os pássaros viessem debicar os
frutos e os legumes ao nascer do dia». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom,
Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.
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