Palácio
de Dogmersfield. Hampshire. Outono de 1501
«(…)
Minha senhora, ou aceitais as minhas ordens ou recebereis a minha ordem de despedimento.
Não me interessa. Agora, trazei a rapariga cá fora ou eu juro pela minha coroa
que entro e, se a apanho despida na cama, não vai ser a primeira mulher que vi
em situação semelhante. Mas é melhor ela rezar para ser a mais bonita. A aia espanhola
empalideceu bastante com o insulto. Escolhei, disse o rei friamente. Não posso
ir buscar a Infanta, respondeu com teimosia. Deus meu! Está decidido! Dizei-lhe
que vou entrar, agora mesmo. Ela andou para trás como uma vaca furiosa, o rosto
branco de choque. Henrique deu-lhe alguns momentos para se preparar e, em
seguida, enganou-a, entrando atrás dela. O quarto estava iluminado apenas por
velas e pela luz da lareira. Os cobertores da cama estavam puxados para trás,
como se a rapariga se tivesse levantado à pressa. Henrique teve a noção da
intimidade, de estar no seu quarto, com os lençóis ainda quentes, o seu cheiro
que permanecera no espaço fechado, antes de olhar para ela. Estava de pé, ao
lado da cama, uma mãozinha pálida em cima do pilar de madeira gravada. Tinha
uma capa azul escura sobre os ombros, e a camisa de dormir branca enfeitada por
renda valiosa espreitava pela abertura da frente. O seu forte cabelo castanho,
entrançado para dormir, caía-lhe pelas costas abaixo, mas o seu rosto estava
completamente protegido por uma mantilha de renda preta, colocada à pressa. A dona
Elvira colocou-se entre a rapariga e o rei. Esta é a Infanta, disse. Usará o
véu até ao dia do casamento. Não com o meu dinheiro, retorquiu Henrique Tudor
amargamente. Quero ver o que comprei, obrigado. Deu um passo em frente. A ama
desesperada quase se pôs de joelhos. A sua modéstia... Ela tem alguma marca
horrível?, perguntou, dando voz aos seus receios mais profundos. Alguma
cicatriz? Ficou marcada da varíola e não me disseram? Juro que não!
Silenciosamente, a rapariga estendeu a mão pálida e retirou a bainha ornamental
de renda do seu véu. A ama suspirou em protesto, mas não pôde fazer nada para
impedir a princesa de levantar o véu, e de o lançar para trás. Os seus olhos
azuis claros fixaram o rosto enrugado e irritado de Henrique Tudor sem
hesitações. O rei analisou-a e suspirou de alívio pela sua aparência.
Era muito bonita: um rosto suave, redondo, um nariz direito e longo, uma
boca cheia, carnuda, sensual. Pôde ver que o seu queixo estava levantado; o seu
olhar era desafiador. Não era uma dama a tremer, temendo ser violada. Era uma
princesa lutadora, cheia de dignidade, mesmo no seu mais assustador momento de
embaraço. Ele fez uma vénia. Sou Henirque Tudor, rei da Inglaterra, afirmou.
Ela fez uma reverência. O rei deu um passo em frente e apercebeu-se de que ela
estava a controlar-se para não recuar. Segurou-a firmemente pelos ombros, e beijou-lhe
uma bochecha morna e macia, e depois a outra. O perfume do seu cabelo e o odor
quente do seu corpo invadiram-no, e sentiu o desejo a pulsar na sua virilha e
têmporas. De imediato, recuou e largou-a. Sede bem-vinda a Inglaterra, disse.
Pigarreou. Perdoareis a minha impaciência em ver-vos. O meu filho também vem a
caminho, para vos visitar.
Perdoai-me, disse geladamente, falando num francês perfeito. Só fui
informada de que Vossa Graça insistia na honra desta visita inesperada há alguns
momentos. Henrique conteve-se um pouco perante a chicotada de mau-humor por ela
demonstrado. Tenho o direito... Ela encolheu os ombros, um gesto totalmente
espanhol. Claro. Tendes todos os direitos sobre mim. Perante as palavras
ambíguas e provocadoras, tomava novamente consciência da proximidade dela: da
intimidade do pequeno quarto, a cabeceira da cama enfeitada com ricos tecidos,
os lençóis convidativamente empurrados para trás, a almofada que ainda tinha a
marca da sua cabeça. Era um cenário de violação, não de saudações reais. Voltou
a sentir um fluxo secreto de desejo. Vejo-vos lá fora, disse abruptamente, como
se fosse culpa dela o facto de não conseguir livrar-se daquela imagem, de como
seria possuir aquela beleza imaculada que comprara. Como seria se a tivesse
comprado para si, em vez de ser para o filho? Com todo o prazer, respondeu
friamente. O rei saiu do quarto bruscamente, e quase foi contra o príncipe
Artur, que andava, ansiosamente, de um lado para o outro, diante da porta. Louca,
comentou.
O príncipe Artur, pálido de nervos, afastou a franja loura do rosto e
permaneceu imóvel, sem dizer nada. Assim que puder, mando aquela aia embora,
disse o rei. E todos os outros. Ela não pode criar uma Espanha pequena na
Inglaterra, meu filho. O país não tolera isso, e eu seguramente também não
aceitarei. As pessoas não se opõem. Os aldeões parecem adorar a princesa,
sugeriu Artur, suavemente. A escolta dela diz... Porque ela usa um chapéu
ridículo. Porque é estranha: espanhola, invulgar. Porque é jovem e, resumiu,
bonita. É?, suspirou. Quer dizer: é bonita? Não acabei de entrar para me
certificar? Mas nenhum inglês vai tolerar qualquer disparate espanhol, quando
deixar de ser novidade. Nem eu. Este é um casamento para fortalecer uma
aliança; não para adular a sua vaidade. Quer lhes agrade, quer não, ela vai
casar convosco. Quer vos agrade quer não, ela vai casar convosco. Quer lhe
agrade quer não, ela vai casar convosco. E é bom que venha aqui fora já ou eu
não vou gostar dela, e isso é a única coisa que pode fazer diferença». In Philippa Gregory,
Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006,
ISBN 978-972-262-455-8.
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