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A
Sucessão (1259-1263)
«(…) Ao contrário do que pensa o
leitor de hoje, os contemporâneos deviam considerar este modo de proceder do
rei bastante honesto. Com efeito, alguns anos mais tarde, o rei Afonso
X, o Sábio, redigia
na sua Quarta Partida
um título inteiro, o XIV, no qual estabelecia as regras a que devia obedecer
a barregania. Alegando as leis dos sábios antigos, não hesitava em a
considerar legítima, apesar de condenada pela Igreja. Explicava que em certos
casos a barregania se justificava de maneira especial: quando, por exemplo, um adelantado, cumprindo um
mandato fora da sua terra, preferisse essa situação, evitando usar do seu poder
para forçar os pais a darem-lhe uma filha em casamento; nesse caso, não podia
ou não convinha casar e por isso era melhor ter uma (ou mais) barregã(s). Era,
de certo modo, o caso do rei, visto que não podia ainda coabitar com sua
mulher. Ao presentear as suas barregãs nobres com ricos domínios, Afonso III não
manifestava a desfaçatez de quem ostenta o fruto de relações ilegítimas, mas presenteava-as
regiamente por lhe terem dado ou poderem vir a dar filhos e assegurava o digno
sustento da sua prole. De resto, a barregania era ainda considerada na época,
como testemunha a referida Quarta
Partida, uma prática socialmente admitida sem grandes
restrições. A sua condenação data do fim do século XIV.
A condessa Matilde, porém,
teimava em não morrer. Por seu lado, Afonso III teve de cumprir os seus deveres
matrimoniais para com a filha de Afonso X. O sogro não lhe poderia perdoar
continuar a fazer filhos em barregãs nobres e plebeias, sendo a rainha núbil e
saudável. No dia 28 de Fevereiro de 1259, dona Beatriz, tendo então apenas 14 anos
de idade, presenteou o rei com o seu primeiro filho legítimo, por sinal uma
menina, a infanta dona Branca. Vinte dias depois, o rei oferecia a igreja do
padroado régio de Santa Maria Madalena de Portalegre ao prior e à comunidade de
cónegos regrantes de S. Jorge de Coimbra. A justificação registada no documento
é significativa:
Para remédio de minha alma e da
dos meus ascendentes, e para que o Senhor, por sua santa misericórdia, dê longa
vida a minha filha, a infanta dona Branca, e a proteja e defenda por longos
anos, e para que o meu Senhor Jesus Cristo me livre do poder do diabo.
O rei, que parecia não ter
escrúpulos em violar os preceitos da Igreja, temeu, portanto, que a ira de Deus
caísse sobre si e sobre a sua filha, aquela que sem dúvida considerava
legítima, mas fruto do pecado, porque o seu matrimónio não podia ser abençoado
pela Igreja. Por isso levantava diante de si, como um escudo sagrado contra as
insídias do demónio, a intercessão de Santa Maria Madalena, a pecadora, cujo
culto era recente em Portugal (a primeira referência que conheço é a de duas
igrejas dedicadas a Santa Madalena, uma em Montemor-o-Velho e outra em Lisboa,
que constam do rol das igrejas de 1259, parcialmente inédito), e a oração dos
cónegos regrantes que prestavam culto a S. Jorge, o vencedor do dragão. Procurou,
depois, outros protectores sobrenaturais, favorecendo uma comunidade que se
distinguia pela sua vigorosa penitência. Deve tê-la considerado a mais virtuosa
que havia em todo o reino. Seguia, assim, o exemplo de seu bisavô Afonso
Henriques, que tinha protegido austeros eremitas, e de seu avô Sancho I, que
tinha beneficiado emparedadas, e anunciava os favores que João I, Afonso V e
Manuel I haveriam de conceder a jerónimos e a franciscanos da mais estrita
observância. Inseria-se numa efectiva tradição da família real portuguesa, que
durante séculos mostrou uma especial sensibilidade para com formas radicais de
austeridade religiosa. As escolhidas eram as clarissas, que acabavam de fundar
o seu primeiro convento português em Lamego pelos fins de 1257 ou princípio de
1258. O rigor da sua vida é testemunhado pelo facto de o primeiro documento que
as menciona lhes chamar reclusas. Viviam ainda no ambiente carismático
criado pela fundadora, Santa Clara de Assis, falecida em 1253. Pouco depois da
fundação, transferiram-se para Santarém, tendo para isso recebido autorização
papal em 29 de Abril de 1259. O texto da bula não é muito claro, mas parece
depreender-se dele que tinha sido o próprio rei a promover a mudança do
convento para a cidade onde ele próprio vivia mais frequentemente e onde mandou
construir um paço novo.
É seguro, em todo o caso, que o
rei lhes tinha prometido construir um mosteiro, como consta da mesma bula. Não
se diz que a sua intenção era assegurar as orações das religiosas para que Deus
lhe perdoasse o seu pecado e não o castigasse a ele nem à filha que acabara de
nascer. Mas a coincidência de datas é suficientemente significativa. Acontece
também que o rei não praticou outras liberalidades do mesmo género nem era, que
se saiba, especialmente devoto. A primeira pedra do novo convento foi benzida
pelo bispo de Lisboa por ordem do papa de 11 de Maio de 1259. Há várias
referências à sumptuosidade que o rei queria conferir ao edifício, o que
não parece ter enchido as pobres freiras de entusiasmo. De facto, foi preciso o
mesmo papa, em bula de 28 de Janeiro de 1260, obrigá-las a aceitar as rendas
que o rei lhes oferecia e que elas se recusavam a receber (carissimus in
Christo filius noster illustris Rex Portugaliae, terrenas divitias transfere cupiens
feliciter in coelestis, monasterium vestrum suis propriis sumptibus dignoscitur
erexisse, qui licet circa vos in eodem monasterio divinis laudibus sub extrema
paupertate voluntaria insudantes [...] certum reditum in vestrarum necessitatum
subsidium [...] vobis desideret assignare, qua tamen propter repugnantia
statuta vestri Ordinis vos illum recipere noluistis, huiusmodi pium ipsius
Regis desiderium hactenus deduci non potuit ad effectum. [...] Nos itaque
ipsius Regis piis precibus favore benevolo concurrentes [...] in virtute obedientiae
districte praecipiendo mandamus quatenus dictum reditum [...] recipere sine dilatione
aliqua studeatis).
Não pode deixar de surpreender a
quantidade de bulas papais emitidas em favor das clarissas de Santarém (cerca
de 19 bulas, datadas de 1258 a 1265). O seu número e o seu teor contrastam fortemente
com a pobreza que elas, pelos vistos, queriam praticar. Não é fácil acreditar
que fossem elas a pedi-las. Encarregar algum clérigo de as obter, ou conseguir
que algum cardeal as solicitasse à cúria, custava uma fortuna. Só se compreende
o facto admitindo que fosse o próprio rei a solicitá-las. Ora convém não
ignorar que, ao fazê-lo, não procedia com inteira inocência. Tal como fizera em
1245, ao obter do papa as indulgências para combater os sarracenos na Hispânia
(o que lhe valeu a confiança de Inocêncio IV e a sua nomeação como curador e
defensor do reino em vez de seu irmão), também agora queria, decerto, aparecer
aos olhos do pontífice como um rei especialmente devoto e que, por isso, não
merecia o rigor das sanções canónicas que Roma lhe impunha devido ao crime de
bigamia». In José
Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História
Política, Revista Análise Social, vol.
XXXV, 2001.
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