«(…) Já as festas da Ascensão e do Corpo de Deus, organizadas
pelos padres da Companhia de Jesus e ocorridas, respectivamente, a 6 e 27 de
Maio, teriam maior solenidade, com altares especialmente montados para o efeito,
missa e pregação e saudação pela artilharia de bordo. O dia de Corpo de Deus
seria mesmo o escolhido para a celebração da primeira missa de um jovem
jesuíta. Todavia o domingo do Espírito Santo, ao contrário do que acontecera
anteriormente, já não era objecto de qualquer festejo, recebendo apenas a
menção do dia. Não passaram despercebidos os tradicionais dias de Santo António
e São João, cujos festejos religiosos e profanos couberam à tripulação do
navio. Com altar levantado no convés, aí se rezou missa com sermão e presença
do vice-rei que, em véspera de São João, mandaria ainda colocar lanternas e
lampiões nas antenas e gáveas dos navios. Em dia de Santo António realizaram-se
ainda danças, uma comédia e entremezes. Estes também teriam lugar pelo São João.
Na
frota seguiam Franciscanos, Jesuítas e Dominicanos, não sendo por isso de
estranhar que tendo caído em época de viagem a comemoração de dois dos seus
patronos, Santo Inácio de Loiola (31 de Julho) e São Domingos (4 de Agosto),
promovessem as respectivas festas. Com a liturgia habitual realizada em altar
também para o efeito erguido no convés, talvez os promotores tivessem
aprimorado de um modo muito especial a sua ornamentação, já que foi descrita
como contendo todo o conserto que o mar pode dar de si. Mas para além da
comemoração das festas comuns e dos santos, no quotidiano religioso de bordo
destacaram-se duas devoções: a das Almas do Purgatório e a do Rosário. Quanto à
primeira, recorde-se que estavam na altura divulgadas as confrarias das Almas e
a bordo a elas se recorria para que, por seu intermédio, Deus mandasse o vento necessário
para as naus navegarem. Daí o hábito de fazer-se peditório em altura de
calmaria para, com o produto das esmolas, se rezarem missas por tal intenção. A
do Rosário, de especial afecto da Ordem dos Pregadores, conheceu nesta viagem não
só uma prática diária que chegou a registar a participação do vice-rei, como
foi implementada a sua devoção no galeão São Francisco, como na capitânia,
através da pregação que propositadamente ali foi realizada por frades
dominicanos ao longo de diferentes ocasiões. No testemunho de Tissanier, no
galeão todas as sextas-feiras se fazia a devoção da Boa Morte, conforme as
intenções do padre-geral da Companhia, Vincent Carafa.
Quanto
aos passatempos, a pesca foi, porventura, aquele que terá conhecido mais
praticantes e do qual também tiraram mais proveito. Albacoras e outros muitos
peixes não identificados foram capturados ao longo da viagem, sobretudo na zona
da Guiné (o primeiro dia de pesca ocorreu a 9 de Abril, em que foram capturadas
três albacoras). Alguns jogos também serviram de entretenimento, como os de parar,
embora a este tenham sido impostas algumas restrições (só poderia ser jogado
com nove cartas e tábuas). Mas as danças, comédias e e entremezes também
ocuparam e distraíram passageiros e tripulantes. Alguns, certamente pela sua
condição social e hierárquica chegaram a deslocar-se a outros navios para
assistirem a representações teatrais (o escrivão
da almiranta e um frade franciscano deslocaram-se ao galeão São Francisco para
assistirem à representação de uma comédia. E, pelo vento ser rijo, acabariam por
vir ter à Bom Jesus da Vidigueira).
A
conflituosidade a bordo das naus da Índia era, como se sabe, muito comum, a julgar
pelas informações disponíveis. Aliás, a morosidade e as intempéries da viagem,
a exiguidade dos espaços, a incomodidade dos alojamentos, a falta de higiene, a
carência e má qualidade dos alimentos e a dificuldade na sua confecção, a
convivência forçada entre pessoas de desigual condição social e cultural,
criavam um ambiente psicológico muito propício aos desentendimentos e discórdias,
que atingiam com frequência a violência. Recorde-se que boa parte dos
contingentes militares enviados para a Índia saíam directamente das prisões e,
muito especialmente, da do Limoeiro. Aliás, dois soldados daqui vindos,
assinale-se, pereceram na viagem. O uso de facas e adargas era proibido, como
forma de prevenir esfaqueamentos.
Na
presente viagem, nem a presença do vice-rei, nem as razoáveis condições do mar
e a quase ausência de calmarias evitaram algumas brigas e desacatos. Estes
ocorreram quer entre grumetes e sodados, quer entre gente de condição, como foi
o caso de um moço fidalgo e um soldado ou de João Lobo, capitão-da-fogo e
Gaspar Carneiro, capitão de uma das esquadras, que se bateram, ou do mesmo João
Lobo que estando à mesa do vice-rei se desentendeu com João Furtado, acabando
os dois na prisão. Também noutros navios as agressões ocorreram. No galeão São
Francisco o meirinho feriu com uma faca um aio do vice-rei; dias depois um
soldado e um grumete tomaram-se de razões junto ao fogão, lugar de grande
concentração de gente e de muita espera, e desencadearam um motim, do qual
resultarão feridos». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde
de Sarzedas, Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras
Margens, CNCDPortugueses, 2001, ISBN 972-787-052-X.
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