A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) Passei o capuz do manto de judas por cima da sua cabeça e
consolei-o enquanto ele soluçava e fungava. Depois do último penitente se ter
arrastado além da nossa antiga sinagoga, frei Carlos acompanhou-nos através do
largo. Na esquina ficava a nossa casa, uma construção baixa de estuque branco,
com um rodapé azul-escuro a toda a volta. A afinidade entre as cores fez-me
erguer o olhar para a gaze turquesa do céu da manhã e depois para a espinha do
telhado, um horizonte de telhas fulvas mosqueadas, interrompido a meio pela
chaminé, um cone branco escurecido pela fuligem com aberturas de ventilação. No
pino destacava-se a silhueta de um trovador de chapa apontando o oriente, para
Jerusalém. Um fino véu de fumo da nossa lareira pairava em torno dele e
desenrolava-se na brisa meridional em direcção ao rio. Ainda bem que não temos
lição hoje, disse frei Carlos, quando abri a cancela de recortes de ferro que
dava para a nossa casa e para a do meu querido amigo Farid e seu pai. Tenho de
tratar com o teu tio de umas coisas tristes que tenho andado a adiar. Entrámos
no recinto resguardado do nosso pátio. Rodeado de alvas fachadas e muros,
pavimentado com lousas cinzentas, ostentava no meio um limoeiro circundado de
moitas de loendros. Farid estava encostado ao alpendre, vestido com um camisão
comprido, descalço, passando as mãos pelos negros anéis do seu cabelo que lhe
pendia para os ombros. A mim, sempre me parecera ter sido dotado com todos os
atributos de um guerreiro poeta dos desertos da Arábia, delgado, musculoso, de
agudos olhos verdes de falcão, uma pele suave morena e uma inteligência ágil e
imprevisível. A penugem que sempre lhe cobria o rosto fazia-o parecer ensonado
mas atraente, e tanto homens como mulheres eram frequentemente cativados pela
sua beleza escura. Fez-me um aceno de saudação com um gesto das mãos vigorosas
habituadas a tecer tapetes. Apesar de ser surdo-mudo de nascença, nunca tinha
sentido a mínima dificuldade em comunicar deste modo comigo; já de pequenos
tínhamos inventado uma linguagem feita de gestos, talvez por termos nascido
apenas com dois dias de intervalo e termos crescido juntos. Ao mesmo tempo que
respondia à saudação do meu amigo, conduzi frei Carlos para a porta da cozinha, um arco em ogiva exuberantemente
decorado com um rebordo de mosaicos com estrelas verdes e cor de ferrugem. Numa
voz hesitante, o frade murmurou: esperemos que o assunto fique arrumado. Poderá
uma casa ter um corpo, uma alma? A nossa parecia derribada e fatigada por
séculos de chuva e de sol, mas protegendo tenazmente os que nela habitavam. No
nosso trabalho de iluministas, tanto eu como o meu tio Abraão tínhamos
frequentemente utilizado a nossa casa como modelo para desenhar as casas
bíblicas. Para as paredes usávamos um alvaiade leitoso e para dar uma ideia dos
tectos baixos e abatidos de avelaneira que rangiam de modo inquietante durante
as chuvadas de Av e Tishrl usávamos o rico castanho feito de vinagre, limalha
de prata e enxofre. As rachas nos alicerces tinham causado uma inclinação do
soalho para o lado do quarto de minha mãe, tão reduzido que pouco mais era que
um corredor estreito, mas com a vantagem de possuir uma entrada para a Rua da
Sinagoga, para as suas freguesas da costura. Virado a nascente, ficava o quarto
de meus tios, acolhedor e cheio de
luz. Entre os dois quartos, havia a cozinha, onde a nossa vida decorria à volta
da enorme mesa de carvalho, e o quarto que eu partilhava com Judas e a minha
irmãzita Cinfa. A nossa loja de fruta, que a julgar pela alvenaria tinha sido
acrescentada dois séculos atrás, irrompia daqui e projectava-se sobre a Rua da
Sinagoga.
Ao entrarmos, frei Carlos fez uma
careta ao sentir o cheiro acre das paredes pintadas de fresco. Enquanto ele e o
meu irmão se dirigiam à cave à procura do meu
tio, fui dar uma olhadela à loja da janela interior do meu quarto. Em baixo, no
meio de cestos de figos e tâmaras, uvas e passas, laranjas amargas, avelãs e
nozes e toda a espécie de frutos existentes em Portugal, estavam Cinfa e a
minha mãe, Mira, a tirar azeitonas de barris de madeira com uma concha para as
disporem em malgas de barro. Inclinei-me para
fora da janela e gritei: abençoado seja Aquele que ilumina as manhãs da
nossa Lisboa! Cinfa respondeu-me com um breve sorriso. Era uma rapariga
desengonçada, estouvada, com uma voz quase aos guinchos que mais parecia
sair-lhe por entre os dedos metidos na boca, mas que ultimamente se tornava
graciosa. Tinha a bem dizer doze anos e era como se à medida que os seus lábios
se tornavam discretamente mais carnudos com eles despertasse a beleza de uma
mulher adulta. A menina que tinha passado horas a correr atrás dos coelhos e a
apanhar rãs, tinha cedido o lugar a outra mais interessada em devanear em
frente da sua tímida gémea de olhos de avelã que o espelho lhe apresentava. Ao ver-me beijar Cinfa, minha mãe lançou-me
um olhar seco, desagradado. Era uma mulher pequena, roliça, de olhar baixo e
ombros curvados, com as formas dissimuladas como sempre numa larga túnica
esverdeada e um avental preto. O cabelo castanho-escuro, salpicado de ténues
mechas acinzentadas na fronte, estava coberto por uma touca de renda escura e
apanhado num rolo atrás da cabeça, preso com uma fita de veludo de Jerusalém
que o seu irmão mais velho, o meu tio Abraão, lhe tinha dado anos antes». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa,
1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT