O
Medalhão de Ouro
«(…) Depois de uma breve oração a
pedir a Deus a bênção do alimento que íamos tomar, serviam-nos leite e pão que
nós consumíamos com grande consolo dos nossos estômagos, mas sem sofreguidão:
já havíamos sido muitas vezes admoestados pelos monitores de que o acto de
comer deve ter a elevação espiritual bastante para lhe retirar quaisquer
resquícios de animalidade, non vivit
homo ut manducet, sed Manducat ut vivat. Sempre tenho pensado
nesta sentença de Diógenes de Laércio, de que mais tarde, em Veneza, adquiri
uma velha edição de 1490 das Vitae
et Sententiae. Não me esqueço, até, de um dito do mestre
monitor que naquele tempo nos tinha a seu cargo como se fôramos o seu rebanho.
Frade muito jovem, de feições brancas e angulosas, queixo proeminente, cabelo
ruivo, ondeado, sobre a testa um caracol pendente que constantemente anelava
com o polegar e o indicador, e aqueles lábios muito bem recortados, como os de
uma estátua grega, que se abriam e fechavam com uma precisão matemática ao pronunciarem,
na sua voz encorpada e timbrada, numa dicção perfeita, todas as sílabas das
palavras. Sempre nos devíamos levantar da mesa com um pouco de apetite: essa
era a regra de ouro da higiene corporal e espiritual. O facto, porém, era que,
não obstante estas ideias calarem em mim, não deixava eu de pensar, olhando bem
em volta a realidade das coisas, que tudo se processava ao invés. O homem vivia
na busca do imediato, do ter e do comer. Só uns quantos, muito poucos,
conseguiam desprender-se das urgências da carne e superar, espiritualizar,
sublimar os instintos. Nesse aspecto, embora me soubesse muito bem a refeição
que tomava, aquele leite denso e suculento, aquele pão perfumado, não me
custava nada aceitar a orientação dos meus superiores franciscanos, que tinham
como norma a pobreza e o evangélico angariar do estrito pão de cada dia.
Acabada a refeição e recitada a oração de acção de graças, dirigíamo-nos para o
grande salão de estudo onde nos preparávamos para as aulas, que não tardavam a
começar, mal a sineta tocava. Toda a escola, contígua ao convento, era então
uma grande colmeia de trabalho. Não havia ninguém desocupado, desde as crianças
que nós éramos, uma espécie de viveiro ou seminário, passando pelos mais
adiantados, os postulantes, os noviços. Os mestres eram recrutados no convento
entre os frades de mais sabedoria e experiência, que lecionavam as disciplinas
mais avançadas e especializadas.
As aulas de iniciação eram
ministradas pelos irmãos que haviam professado recentemente e revelado
propensão para o magistério. Sempre me infundiu um profundo respeito ver os
mestres passarem, com seus livros nas mãos ou debaixo do braço, o andar calmo e
o semblante sem paixões de quem atingiu a serenidade da sapiência. Ouvi-los
falar era para mim motivo de enlevo e os seus ensinamentos penetravam-me no
espírito sedento sem admitirem réplica: o que eles diziam era a verdade. Então,
eu não sabia ainda o que era a opinião, desconhecia que um mesmo assunto podia
ser encarado por ângulos diferentes e nem sempre as ideias das pessoas
coincidiam. Quando mais tarde assisti maravilhado a algumas sessões do Concílio
de Trento, aprendi que homens tidos como sábios e doutos, os mais doutos e
sábios que a Cristandade elegera e enviara àquela cidade italiana, podiam
discutir e debater uma questão por prismas diversos e não raro antagónicos. Era
este um terreno resvaladiço, diziam-me, que só a muita santidade e isenção
desses doutores e a sua inteligência iluminada pelo divino Espírito Santo
podiam arrostar, estava eu a entender? A incerteza e pusilanimidade eram armas
do anjo das trevas. Assaltavam os menos escudados e ai de quem vacilasse e
deixasse entrar no seu coração a semente da dúvida. A escola no entanto,
sobretudo nos anos de iniciação, tinha o sacrossanto encargo de formar os
espíritos e as almas, lançando os alicerces e as traves-mestra da verdade que
havia de levar à santificação, último escopo de toda a ciência humana. Tinha
pois de ser normativa e dogmática.
Eu ficava parado a ver passar os
mestres e a cismar em que também um dia gostaria de ser sabedor como eles. Isso
levava-me a dedicar-me afincadamente ao estudo. É por essa altura que as
pessoas que me rodeiam surgem na minha memória com nome próprio, bem
identificadas. Recordo-me e estou a ver como se fosse hoje... Porque me ficou
essa cena tão gravada na lembrança que ainda agora há qualquer coisa, muito
vaga, nas profundezas de mim, que me dói?... Era numa sacristia. Ao longo da
parede, engastado nela e em cima de um estrado baixo, corria aquele imenso,
comprido e alto móvel, de bela nogueira lustrosa de um castanho rosado e
quente, com os seus enormes gavetões onde se guardavam as alfaias do culto e os
paramentos, que cheiravam a alecrim e a espicanardo. Na parede seguinte um
arcaz grande, tachonado, um banco corrido e por cima uma janela gótica,
geminada, com vitral. No lado oposto, logo à esquerda de quem entra, a pia da
água benta, concha espalmada de mármore branco, com nervuras e relevos lavrados
por fino cinzel, a que a maior parte de nós ainda não chegava senão em bicos
dos pés. E nós éramos
aqueles pequenos seres que no meio da ampla quadra, sentados em círculo nuns
escabelos de madeira, muito rasos, rodeávamos aquele jovem fradelo vestido de
grosseiro burel castanho, cingido de corda, que lhe fazia cair em pregas miúdas
a sotaina». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara,
2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT