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de wikipedia e jdact
«(…) Como nos cansássemos desses
folguedos, sentamo-nos e ele falou-me durante muito tempo; disse que estava
fascinado por mim, que não sossegaria, dia e noite, até que houvesse dito o quanto
me amava, que se eu fosse capaz de amá-lo e de fazê-lo feliz eu lhe salvaria a
vida, e muitas outras coisas bonitas; da minha parte, disse-lhe pouco, mas a minha
postura prontamente revelou que eu não passava de uma tola e não percebia de
modo algum o que ele pretendia. Depois ele começou a caminhar pelo quarto e,
pegando na minha mão, fez-me passear com ele; pouco a pouco, foi ganhando segurança
e em certo momento atirou-me na cama e ali me beijou com muito ardor, mas, a
bem da justiça, devo dizer que não usou de rudeza, apenas beijou-me muito,
depois, como teve a impressão de que alguém subia a escada, levantou-se da
cama, ergueu-me também, professando imenso amor por mim; disse que se tratava
de um afecto honesto e que não queria causar-me mal algum, e pondo cinco
guinéus na minha mão foi-se escada abaixo.
Eu estava mais confusa com o
dinheiro do que estivera antes com o amor, e comecei a sentir tamanha exaltação
que mal tomava conhecimento do chão em que pisava; considero muito importante
esta parte de minha história porque, se ela vier a ser lida por uma jovem
inocente, talvez a instrua a se proteger do mal que lhe pode acarretar a
consciência prematura da própria beleza; se uma jovem se julga formosa, nunca
duvidará da sinceridade de todos os homem que se disserem apaixonados por ela,
pois se ela crê ser encantadora o bastante para cativar o homem, é natural que
aceite de bom grado os efeitos dos seus encantos. O jovem cavalheiro inflamara o
seu desejo tanto quanto aguilhoara a minha vaidade, e como se percebesse que
tivera oportunidade e lamentasse não a ter aproveitado, daí a meia hora, mais
ou menos, subiu a escada de novo e retomou seus arroubos comigo, tal como
antes, só que com menos prelúdios.
Para começar, ao entrar no
quarto, virou-se e, fechando a porta, disse, senhora Betty, antes pareceu-me
que alguém subia a escada, mas não era verdade; se eu for visto neste quarto com
você, não me surpreenderão a beijá-la, e respondi que não fazia ideia de quem
poderia subir pela escada, pois acreditava que não havia mais ninguém na casa
além da cozinheira e da outra criada, que nunca estavam por ali; minha querida,
disse, em todo caso é melhor nos garantirmos, e com isso ele sentou-se e
começamos a conversar, e agora, ainda que eu continuasse inflamada devido à sua
primeira visita e pouco falasse, ele, por assim dizer, pôs palavras em minha
boca, falando da paixão com que me amava e que, embora não pudesse mencionar
tal desejo antes de entrar na posse do seu património, estava decidido a
fazer-me feliz e também a sê-lo; disse que queria casar-se comigo e muitas
outras palavras românticas, cuja verdadeira finalidade eu, pobre néscia, não
compreendia, tendo-me portado como se não houvesse outra espécie de amor senão
o que conduz ao matrimónio, e ao ouvi-lo falar de núpcias, não encontrava
oportunidade nem me sentia com forças para dizer que não, se bem que ainda não
houvéssemos chegado a esse ponto.
Não fazia muito tempo que
conversávamos quando ele se pôs de pé e, deixando-me quase sem ar com os seus
beijos, jogou-me na cama de novo; como ambos estivéssemos então bastante
estimulados, ele foi mais longe do que a decência me permite referir, mas se
ele houvesse tomado mais familiaridades do que quis, não estaria em meu poder
negar-lhe alguma coisa naquele momento. Todavia, conquanto tenha tomado essas
liberdades comigo, não chegou ao que chamam de último favor, o que, para lhe fazer
justiça, ele nem tentou; essa renúncia voluntária serviu-lhe de pretexto para
todas as liberdades em outras ocasiões depois dessa; findo o nosso encontro,
ele pôs em minha mão quase um punhado de moedas de ouro e me deixou, fazendo
mil protestos de paixão e afirmando amar-me mais do que a todas as mulheres do
mundo.
Não
há de parecer estranho que eu agora começasse a pensar, mas minhas reflexões
eram, ai de mim!, pouquíssimo sólidas, eu tinha uma reserva quase ilimitada de
vaidade e orgulho, e pouca reserva de virtude; é verdade que, uma vez por
outra, perguntava-me o que meu senhor pretendia, porém não pensava em nada além
das belas palavras e do ouro; se queria casar-se comigo ou não, parecia-me assunto
de pouca importância, nem os meus pensamentos chegaram a sugerir a necessidade
de tentar algum acordo em meu benefício, até que ele veio a fazer-me uma espécie
de proposta formal. Assim, pois, abandonei-me sem o menor cuidado à possibilidade
de me arruinar, e sou bom exemplo para todas as jovenzinhas cuja vaidade
prevalece sobre a virtude; jamais se viu maior parvoíce por parte de duas
pessoas, se eu tivesse procedido como devia e resistido, como impõem a virtude
e a honra, o cavalheiro haveria desistido dos seus avanços ao ver que não tinha
possibilidade alguma de alcançar os seus desígnios, ou teria feito propostas de
casamento sérias e formais, e nesse caso quem o reprovasse não teria como
reprovar a mim; em suma, se ele me conhecesse e tivesse percebido como era fácil
conseguir a ninharia a que aspirava, não teria precisado quebrar tanto a cabeça,
bastaria dar-me quatro ou cinco guinéus e teria se deitado comigo da próxima
vez que viesse; se eu me tivesse dado conta dos seus desígnios e de como ele
supunha ser difícil ganhar-me, poderia ter imposto as minhas próprias condições;
e se eu não houvesse transigido em favor de um casamento imediato, poderia tê-lo
feito em troca de uma manutenção até às núpcias e teria o que quisesse: ele já
era mais do que rico, além do que viria ainda a herdar; eu parecia ter posto
inteiramente de lado todos os pensamentos dessa espécie e só me deixava levar
pelo orgulho de minha beleza e de saber-me amada por tal cavalheiro; quanto ao
ouro, passava horas e horas a contemplá-lo, contava os guinéus inúmeras vezes,
mais de mil por dia; nunca pobre criatura assim vaidosa esteve tão mergulhada
em falsidade, sem atentar ao que me aguardava e que a ruína já quase batia à
porta; na verdade, acredito que desejasse aquela ruína, uma vez que nada fazia
para evitá-la». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders,
Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.
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