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de wikipedia e jdact
O
Contrato da Carne
«(…) O dia surgiu com uma luz
roxa; os sinos das igrejas tocaram em uníssono. Mariana quase não dormia. Ao acordar
do sono curto daquela noite teve uma sensação de peso sobre o peito. Levantou-se
da cama, sentindo-se indefesa. As toalhas haviam sido trocadas; a bacia estava
cheia de água, as saias estendidas sobre uma cadeira, os sapatos ao pé da cama.
Mariana abriu a arca de noiva. Um cheiro de mofo penetrou em seu nariz. Retirou
os pós, os perfumes, as cabeleiras, que não usava mais, as roupas que tinham
sido da sua avó, de sua mãe, depois suas. Estreitas, delicadas, com rendas e
enfeites. Vestiu uma delas. As mulheres cultivavam a alicantina da falsa
fragilidade. A sua mãe dizia que os seres masculinos eram muito vulneráveis e
por esse motivo precisavam de pistolas. Nenhuma mulher devia temer um homem. Mariana
foi tomada de um enorme ânimo; a possibilidade de um encontro com o pai a
confortava; a ideia de retornar das Minas com uma grande herança lhe trazia
alívio. Quando pensava em fazer uma viagem, a sua pulsação tornava-se mais intensa.
Nos últimos meses ela andara cogitando demais sobre a morte. Era vista com
reservas e mesmo censura pela gente principal. Dom Fernando tentara, por
diversas vezes, fazê-la contrair novo matrimónio. Apresentava-lhe ridículos gentios
da Corte, aos quais ela demonstrava indiferença ou desprezo. Se partisse para
as Minas a sua reputação estaria, de vez, destruída.
Embora muitos a julgassem uma mulher
de hábitos anormais, havia por ela um certo respeito, devido à sua posição.
Doava dinheiro para as igrejas, recolhimentos, misericórdias e caridades, para
os pobres e estrangeiros, vagabundos e poetas, e no Rio de Janeiro havia tantos
poetas como carrapatos nas patas dos cavalos. Escrivãos, varredores de pó de
casas de livraria, estudantes apaixonados, amanuenses, advogados confundiam a sua
medíocre actividade de garranchar letras com engenho poético. Viviam a solicitar-lhe
jantares, carruagens, passeios e caça, quando não dinheiro para ficarem
taramelando por aí. Mariana mandava-lhes o que pediam apenas para se livrar
deles. Agora a sua riqueza estava a ponto de se acabar. O que seria dela,
pobre, sem marido, sem escravos?
Como seria o lugar das Minas, que
o amanuense descrevera como povoado de mulheres nuas uivando e homens se
atracando? O que significavam cinco arrobas de ouro? Todos sabiam como eram as histórias
de Eldorados. O ouro demonstrara a sua poderosa força maléfica em Ofir na
Arábia Feliz, e em Golconda da dinastia Kutb Chahi; nas ilhas de Crísis e Argira,
de onde se esperavam arrancar rochas inteiras de ouro e prata. Eram conhecidas
as proezas de Marco Polo em Xipangu, as lendas das cornucópias de Hispaniola onde
índios adornavam os lóbulos das orelhas e narizes com argolas de ouro. As
fábulas de cabo Ledo, cabo das Três Pontas; de Kantora, em Gâmbia; dos contrafortes
de Fatu Jalón, onde ficava a esplendente jazida de ouro em pó da ilha de Tibar.
Os homens estavam sempre a lavar
tijolos. Mariana precisava ver o pai, fazer-lhe uma pergunta cuja
resposta poderia mudar a sua vida. Assim, pediu a Tenório que avisasse a
Valentim sobre a sua decisão: iria partir para os Sertões dos Cataguases, o El
Dourado das serras mineiras». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora
Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
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