«(…) As duas folhas de papel
foram colocadas sob a lona, alguém veio recolhê-las e depois apagou a luz.
Minutos depois o homem que anunciara o sequestro devolvia o bilhete dirigido a Édson:
olha, doutor, o pessoal está bravo com o senhor. Estão achando que foi pouco
enfático no bilhete e que não está levando a sério a hipótese de ficar connosco
um mês ou, se preciso, um ano. Como é que o senhor insinua no bilhete para Édson
que eu sou a sua protectora, porra? Willy tentou explicar-se, mas não houve
jeito. Deram-lhe de novo papel e caneta e o homem começou a ditar: comece
assim: caro Édson: eu exijo que a polícia fique de fora disto... Willy interrompeu-o.
Mas não vão acreditar que é espontâneo, nunca uso essa linguagem. Está bem,
doutor, faça como o senhor achar melhor. Outra coisa, companheiro: podia parar
com esse negócio de doutor? Não sou doutor, nem terminei o meu curso de
engenharia. Então, nada de doutor. Sem perceber, Willy acabara de baptizar seu
carcereiro, que a partir daquele momento seria o Companheiro. O bilhete
acabou saindo como Willy queria. Porém, mais importante do que isso, ele sentia
que começava a controlar a situação. Foi um bilhete curto:
Édson amigo. Estou numa enrascada
brava, companheiro, e você será a minha salvação. É vital deixar a polícia fora
disso, de qualquer maneira. Tenho certeza de que vai ter pulso suficiente para
isto. Você é o homem da negociação. Com a sua ajuda volto logo. Guilherme.
A injecção aplicada dentro do
carro parecia começar a fazer efeito e Willy adormeceu em seguida. Dormiu ao
som de ruídos bucólicos: um bezerro que mugia, galos cantando, música vinda de
um rádio distante, vozes de gente ao longe e, a cada meia hora, o barulho
remoto de um veículo passando em alta velocidade por uma estrada. Mais tarde,
os sequestradores tentariam convencê-lo de que toda aquela sonoplastia era
artificial e tinha sido montada especialmente para confundi-lo e transmitir-lhe
a impressão de que estivera preso na zona rural.
Em Salvador, uma operação de
guerra começava a ser montada para tirá-lo o mais cedo possível daquele lugar.
Cláudia, a sua mulher, ficara sabendo do sequestro minutos depois da cena à
porta da academia. Alguns alunos tinham visto o seu marido ser levado à força
para dentro do Monza e correram para avisá-la. Ela comunicou-se com o irmão de
Willy, Francisco Affonso Ferreira, o Chiquito, também director da Bahema, que
conseguiu localizar em São Luís do Maranhão o filho do presidente da República,
Fernando José Sarney. Horas depois, Cláudia receberia um telefonema do director
da Polícia Federal, Romeu Tuma, que estava em Volta Redonda, onde cinco operários
haviam sido mortos por tropas do Exército durante uma greve. O governador da
Bahia, Waldir Pires, mandou que policias locais vigiassem a casa do empresário,
em cujo telefone foi acoplado um sistema de gravação.
Uma
amiga da família, sobrinha do general Ivan Souza Mendes, ministro-chefe do SNI,
sugeriu que o tio fosse accionado. Confusa, Cláudia consultou Tuma por
telefone. Sem encontrar o delegado, acabou falando com o filho deste, também
policia, que a demoveu da ideia de recorrer ao SNI. Não me parece que seja
necessário, disse ele. Num caso como esse, acho que a primeira providência do
general Ivan seria consultar o meu pai. Diante da pouca experiência da polícia
baiana em sequestros, outro irmão de Willy, Manuel Alceu Affonso Ferreira,
advogado e ex-juiz do TRE paulista, decidiu pedir ajuda ao secretário de Segurança
Pública de São Paulo, Luiz Antonio Fleury Filho. Este colocou à disposição da família
uma equipe do Grupo Anti-Sequestro, o GAS, que poderia embarcar para Salvador a
qualquer momento, desde que uma liturgia burocrática fosse previamente
cumprida: a solicitação teria que partir do secretário de Segurança Pública da
Bahia. Mas o secretário baiano estava licenciado, participando da campanha
eleitoral». In Fernando Morais, Cem quilos de ouro, Companhia das Letras, 2003,
ISBN 978-853-590-449-9.
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