sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Moll Flanders no 31. Daniel Defoe. «Quando nos vimos a sós, ele pôs-se a falar com muita sisudez e disse que não me levara ali para me seduzir, já que a sua paixão por mim não lhe permitiria abusar de mim, pois estava decidido a casar-se comigo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Entrementes, eu tinha bastante astúcia para não dar o menor ensejo para que algum membro da família suspeitasse de mim ou imaginasse que eu tinha a menor ligação com o jovem cavalheiro; quase nunca o olhava em público e, na presença de alguém, só lhe falava em resposta a algo que ele me dissesse; apesar disso, de vez em quando tínhamos uma pequena entrevista, em que não havia tempo senão para a troca de uma ou duas palavras ou, de quando em quando, um beijo, mas nunca surgia boa ocasião para o mal pretendido, sobretudo porquanto ele fazia mais circunlóquios do que seria necessário se lesse os meus pensamentos, e como a empresa lhe parecia difícil, na realidade assim a tornava.
Entretanto, como o diabo é um tentador infatigável, ele nunca deixa de achar oportunidade para o mal com que nos acena, e essa oportunidade surgiu numa tarde em que eu estava no jardim com as duas irmãs mais novas e ele, todos em inocente colóquio, quando ele encontrou um meio de deslizar para a minha mão um bilhete em que dizia que no dia seguinte me pediria, em público, que levasse uma mensagem à cidade para ele e que eu o encontraria em algum ponto do caminho. Assim, no outro dia, depois do almoço, disse-me diante das irmãs, muito sério, senhora Betty, preciso pedir-lhe um favor; o que é?, perguntou a irmã menor; bem, irmã, continuou ele, se não puderem prescindir da senhora Betty hoje, poderá ser em qualquer outro dia; claro que sim, disseram elas, podiam muito bem prescindir de mim, e a irmã desculpou-se por haver perguntado do que se tratava, o que disse ter feito por simples rotina, sem dar àquilo importância alguma; bem, irmão, disse a irmã mais velha, tem de dizer à senhora Betty do que se trata; se for algum assunto particular de que não devemos tomar conhecimento, pode falar-lhe em particular, esteja à vontade; ora, irmã, disse o cavalheiro, com toda a seriedade, o que quer dizer com isso? Só quero pedir que ela vá à uma loja na High Street, e em seguida tirou do bolso um colarinho postiço e contou então uma longa história sobre duas belas gravatas pelas quais tinha feito uma oferta e queria que eu fosse até lá e lhe fizesse o favor de comprar uma gravata para o colarinho que ele mostrava, e se não aceitassem o valor que ele propusera, oferecesse um xelim a mais e regateasse com eles; a seguir, deu-me outras incumbências e pequenas coisas para fazer, de modo que eu passasse muito tempo fora.
Depois de expor todos esses encargos, contou-lhes outra longa história de uma visita que faria, naquela tarde, a uma família que todos conheciam e em cuja residência estariam tais e tais cavalheiros, que ficariam muito satisfeitos com o encontro, e pediu formalmente às irmãs que fossem com ele; com a mesma formalidade, elas declinaram do convite, por causa de visitas que receberiam naquela tarde; diga-se de passagem que ele tramara o ardil justamente por saber disso. Mal acabara de lhes falar e de me explicar as incumbências, seu criado chegou para informar que a sege de sir W… H… chegara à porta, e ele saiu e logo retornou, que pena!, exclamou, lá se vai minha tarde por água abaixo, sir W… mandou a sua sege para me buscar e quer falar comigo sobre um assunto sério; creio que esse sir W… era um cavalheiro que morava a cerca de cinco quilómetros fora da cidade e a quem na véspera ele pedira emprestada a sege para um assunto particular, dizendo-lhe que a enviasse por volta das três horas, como ele fez.
Pediu sua melhor peruca, o chapéu e a espada, ordenando ao criado que fosse à outra casa para apresentar as suas desculpas por não poder ali comparecer, o que era simplesmente um pretexto para afastá-lo, e preparou-se para subir à sege; no momento em que saía, deteve-se um instante e falou-me, em tom circunspecto, do que me pedira, achando oportunidade de dizer à meia-voz, saia depressa, querida, o mais cedo que puder; nada respondi, limitando-me a fazer uma reverência, como se em resposta ao que me dissera em voz alta; daí a cerca de um quarto de hora, saí também; não mudei a roupa que vestia, de modo que não pudesse surgir na casa a menor suspeita, mas levava no bolso um capuz, um véu, um leque e um par de luvas; ele esperava-me na sege numa ruazinha atrás da sua residência, pela qual sabia que eu haveria de passar, e instruíra o cocheiro para onde deveria ir, um lugar chamado Mile-End, onde morava um amigo seu; entramos na casa, e notei que havia ali todas as comodidades do mundo para que pecássemos tanto quanto quiséssemos.
Quando nos vimos a sós, ele pôs-se a falar com muita sisudez e disse que não me levara ali para me seduzir, já que a sua paixão por mim não lhe permitiria abusar de mim, pois estava decidido a casar-se comigo logo que entrasse na posse da herança e que, até lá, se eu aceitasse a sua proposta, ele me manteria com toda a honradez; mil vezes professou a sua sinceridade e seu afecto por mim, assegurando que jamais me abandonaria, e, se me é lícito dizer, fez mil vezes mais preâmbulos do que precisava.
Todavia, como insistia para que eu lhe respondesse, eu disse que não tinha motivo algum para duvidar da sinceridade do seu amor por mim, depois de tantas declarações, mas…, e calei-me, como se quisesse que ele adivinhasse o resto; o que é, minha querida?, disse ele, já imagino o que você quer dizer: o que acontecerá se engravidar, não é isso? Ora, cuidarei de si e de todas as suas necessidades, bem como as da criança, e para ver que não estou brincando, fique com isto de presente, e entregou-me uma bolsa de seda com cem guinéus, e lhe darei outra igual, disse, a cada ano, até nos casarmos». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT