«(…) Mirina seguiu adiante e,
para onde quer que olhasse, tudo o que via era doença e tristeza. Homens,
mulheres e crianças amontoados na sombra tremiam de medo e de febre; outros,
ajoelhados junto a fogueiras já apagadas, esfregavam cinzas no corpo em
silêncio. E o local onde antes ficava o casebre da sua mãe não passava agora de
um leito de carvões negros com objectos conhecidos espalhados por cima sem o
menor cuidado. Sem conseguir entender direito o que via, a moça ajoelhou-se e viu
um pequeno círculo enegrecido que despontava das cinzas: era a pulseira de
bronze que a sua mãe usava, e que havia jurado jamais tirar até ao dia da sua
morte. Eu sinto muito, querida, disse uma voz débil. Ao virar-se, Mirina viu
que era o senhor vizinho da mãe ali de pé, apoiado numa bengala, com feridas
abertas em volta da boca. É melhor ir embora, falou ele. Estão procurando
alguém para culpar. Tentei fazê-los ouvir a voz da razão, mas ninguém deu
ouvidos. Com uma das mãos cobrindo a boca, Mirina começou a se afastar,
ignorando os comentários que a seguiam pelo povoado conforme avançava. Pu…!, gritavam
os homens, não porque houvesse dormido com eles, mas porque jamais o fizera.
Bruxa!, gritavam as mulheres, esquecendo que fora a mãe de Mirina quem as
amparara à noite durante o parto de cada um dos seus filhos..., e esquecendo
que fora Mirina quem fabricara com ossos de animais os brinquedos desses mesmos
bebés.
Quando finalmente voltou para
junto da irmã, encontrou-a sentada numa pedra na beira da estrada, rígida de
medo e de raiva. Porque não me deixou ir?, perguntou, balançando-se para a frente
e para trás com os braços cruzados. Demorou muito. Mirina cravou a lança no
chão e sentou-se ao lado dela. Lembra o que a mãe nos disse quando fomos
embora? Que, acontecesse o que acontecesse, precisava sempre confiar em mim? Lilli
ergueu o rosto retorcido por um mau pressentimento. Estão todos mortos, não é?,
sussurrou. Igual às pessoas do meu sonho. Mirina não respondeu. A garotinha
começou a soluçar. Eu quero ver a mãe. Por favor! Mirina envolveu a irmã num
abraço apertado. Não há mais nada para ver.
Região
de Cotswolds, Inglaterra
Meu pai foi-me buscar
na estação de comboio de Moreton-in-Marsh vestido com uma elegância
surpreendente, apesar da hora. Eu esperava encontrar um homem ranzinza e mal
barbeado. Fiquei comovida ao vê-lo com uma calça de veludo bastante decente em
vez do pijama que costumava usar em casa nos fins-de-semana. Eu começara a
temer que fosse apenas questão de tempo para aquela roupa de dormir se
aventurar sozinha até ao quintal para buscar o jornal e muito possivelmente
acabar dando umas voltinhas de carro. Não quero ser enxerido, mas... Meu pai
não achou necessário completar a frase. Era o seu modo de dizer: por que
cargas-d’água quis sair de Oxford às sete da manhã? Ah... Olhei pela janela
para nada em especial, lutando contra uma ânsia infantil de contar o verdadeiro
motivo da minha visita. Achei que já estava na hora de ser um pouquinho
inconveniente. Privilégios de filha única. Meus pais moravam num antigo chalé
construído com pedras douradas por algum antepassado distante que, a julgar
pelas maçanetas na altura dos joelhos, não devia ter muito mais de 1,5 metro.
Para ele, a casa devia ser uma mansão espaçosa; para mim, que sempre fui alta
para a minha idade, sempre parecera apertada e, quando era criança, muitas
vezes fantasiei ser uma gigante aprisionada por dois trolls numa colina na floresta.
Depois que fui morar
sozinha, é claro que até mesmo as frustrações da infância tinham ganhado brilho
e encantamento, pois sempre que eu voltava descobria ter ficado um pouco mais
cega para as limitações da casa..., a ponto de até me deliciar com a sua
exiguidade reconfortante. Entramos na casa pela garagem, como sempre, e paramos
num quartinho para tirar os sapatos. O recinto transbordava casacos, flores já
ressequidas e um estoque de castanhas pendurado no tecto; sem dúvida era o mais
bagunçado da casa. No entanto, eu gostava de me demorar ali, pois o cheiro era
familiar e relaxante: de capas de chuva e camomila e, mesmo anos depois, do
cesto de maçãs que certa vez esqueceramos em cima do braseiro. Assim que calçou
os chinelos, o meu pai prosseguiu em direcção à cozinha e, de lá, para a sala
de jantar. Um pouco intrigada com esse trajecto, fui atrás e o vi aproximar-se
da janela de forma um tanto furtiva.
No jardim havia um novo comedouro para aves, posto ali para os
passarinhos de que o meu pai tanto gostava. Sobre a sua plataforma, porém,
estava aboletado um esquilo preto que se refestelava com as sementes destinadas
aos passarinhos. Ele outra vez! Meu pai mal parou para pedir licença antes de
irromper porta-fora, de chinelos e tudo, e pôr fim àquele terrível plano da
natureza. Ao vê-lo daquele jeito, correndo pelo quintal dos fundos com o
cardigã vestido de trás para frente, era quase impossível pensar que aquele
homem, Vincent Morgan, tivesse sido até recentemente o director da escola da
cidade, onde, durante muitos anos, havia instilado terror nos corações de
meninos e meninas. Por toda a região, o meu pai era conhecido como Morgan, o
Górgona, e sempre que eu saía de casa sozinha quando era pequena, corria o
risco de ser seguida na rua por um bando de meninos a entoar Morgan, a Minigórgona
até o açougueiro sair com o seu avental sujo de sangue e botá-los para correr».
In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN
978-858-041-543-0.
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