«(…) Atravessamos
juntos o portão, rindo, e Frank parou para que eu subisse os estreitos degraus
da entrada à sua frente. De repente, agarrou-me pelo braço. Cuidado! Não pise
nisso aí! Parei com o pé cuidadosamente erguido acima de uma grande mancha
vermelho-amarronzada no degrau superior. Que estranho, disse. A sra. Baird
esfrega os degraus todas as manhãs; eu já vi. O que acha que pode ser isso? Frank
inclinou-se sobre o degrau, delicadamente procurando sentir o cheiro. Assim de
improviso, eu diria que se trata de sangue. Sangue! Recuei um passo. De quem? Olhei
nervosamente para a casa. Acha que a sra. Baird sofreu algum tipo de acidente? Não
podia imaginar a nossa imaculada senhoria deixando manchas de sangue secando na
soleira da porta, a não ser que uma enorme catástrofe tivesse ocorrido.
Imaginei por um instante se a sala de visitas não estaria abrigando um
assassino ensandecido, preparando-se naquele mesmo instante para saltar sobre
nós com um grito arrepiante. Frank sacudiu a cabeça. Ficou na ponta dos pés
para espreitar o jardim do vizinho por cima da cerca viva. Acho que não. Há uma
mancha igual a essa na entrada da casa dos Collins também. É mesmo? Cheguei
mais perto de Frank, tanto para olhar por cima da cerca quanto em busca de
apoio moral. As Highlands dificilmente pareceriam um lugar provável para um
assassinato em massa, por outro lado eu duvidava que essas pessoas usassem
qualquer tipo de critério lógico ao escolher o local do crime. Isso é um
tanto..., desagradável, observei. Não havia nenhum sinal de vida na casa ao
lado. O que acha que aconteceu? Frank franziu a testa, pensando, depois bateu a
mão rapidamente na perna da calça, como se tivesse uma súbita inspiração. Acho
que sei! Espere um instante. Partiu em direcção ao portão e começou a descer a
rua quase correndo, deixando-me desamparada na entrada da casa. Voltou logo
depois, radiante com a confirmação. Sim, isso mesmo, tem que ser. Todas as
casas deste lado tiveram isso. Isso o quê? A visita de um maníaco homicida?,
perguntei um pouco rispidamente, ainda nervosa por ter sido bruscamente
abandonada sozinha, na companhia apenas de uma grande mancha de sangue. Frank
riu.
Não, um sacrifício
ritual. Fascinante! Estava de quatro na relva, examinando atentamente a poça de
sangue. Aquilo não me parecia nada melhor do que um maníaco homicida.
Agachei-me ao lado dele, contorcendo o nariz diante do cheiro. Ainda era cedo
para moscas, mas dois mosquitos das Highlands, grandes e lentos, giravam em
torno da mancha. O que quer dizer com sacrifício ritual?, indaguei. A sra.
Baird frequenta a igreja, assim como todos os seus vizinhos. Isso aqui não é o
Monte dos Druidas ou nada semelhante, não é? Levantou-se, limpando os
pedacinhos de relva das calças. Não há nenhum lugar na Terra com mais magia e
superstições antigas influenciando o quotidiano das pessoas do que as
Highlands. Com ou sem igreja, a sra. Baird acredita nas lendas dos povos
antigos, assim como todos os seus vizinhos. -Apontou para a mancha com o bico
do sapato perfeitamente engraxado. O sangue é de um galo preto, explicou,
satisfeito. As casas são novas, sabe. Pré-fabricadas. Olhei-o friamente. Se acha
que isso explica tudo, pense melhor. Que diferença faz a idade das casas? E
afinal, onde está o universo?
No pub, eu
acho. Vamos até lá verificar? Tomando-me pelo braço, conduziu-me pelo portão e
começamos a descer a Gereside Road. Antigamente, ele explicou conforme
andávamos, e não faz tanto tempo assim, quando uma casa era construída, era
costume matar alguém e enterrá-lo nos alicerces, como uma oferenda aos
espíritos da terra. Sabe, ali ele lançará os alicerces ao seu primogénito e no
seu filho mais novo erguerá os portões. Antigo como os montes. Estremeci
diante da citação. Nesse caso, suponho que seja bem mais moderno e
compreensível que estejam usando galinhas. Quer dizer, já que as casas são
relativamente novas, nada foi enterrado sob elas e os moradores agora estão
tentando remediar a omissão. Exactamente. Frank parecia satisfeito com meu
progresso e deu uns tapinhas nas minhas costas. Segundo o vigário, muitos dos
habitantes locais acham que a guerra foi em parte causada pelo facto de as
pessoas estarem abandonando as suas raízes e deixando de tomar as devidas precauções,
como enterrar uma oferenda sob os alicerces das casas ou queimar espinhas de
peixes na lareira. Excepto hadoques, é claro. Sabia? Ou nunca mais pescará um.
Ao invés disso, sempre enterre as espinhas de um hadoque.
Vou-me
lembrar disso, prometi. Diga-me o que se deve fazer para nunca mais ver um
arenque e eu o farei imediatamente. Ele sacudiu a cabeça, absorto num de seus
acessos de lembrança, aqueles breves períodos de êxtase erudito quando ele
perdia o contacto com o mundo à sua volta, completamente empenhado em evocar
conhecimentos de todas as fontes. Não sei nada sobre arenques, disse,
distraído. Mas para ratos, penduram-se ramos de choupo tremedor por toda parte.
Choupo treme-dor na casa, e nunca verá um rato, como se diz. Quanto a
corpos nos alicerces..., é daí que vêm muitos dos fantasmas locais. Conhece
Mountgerald, a casa grande no final da High Street? Há um fantasma lá, um
operário que trabalhava na construção da casa e foi assassinado em sacrifício
para os alicerces. Em algum momento do século XVIII; isso, na verdade, é
bastante recente, acrescentou, pensativamente. Diz-se que, por ordem do dono da
casa, uma parede foi construída primeiro, depois um bloco de pedra foi
empurrado de cima da parede sobre um dos operários. Provavelmente algum sujeito
de que ninguém gostava foi escolhido para o sacrifício. Então, ele foi
enterrado no porão e o resto da casa foi construído sobre ele. Agora, assombra
o porão onde foi assassinado, excepto na data de aniversário da sua morte e nos
quatro Dias Antigos. Dias Antigos?» In Diana Gabaldon, Nas Asas do Tempo, 1991, Casa das
Letras, LeYa, 2010, 2016, ISBN 978-972-461-974-3.
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