«(…)
Pior, com aquela
imobilidade toda, tinha a certeza de que ela também não dormia. Nenhuma mulher
com um beijo tão puro conseguiria descansar tendo um homem no mesmo quarto,
muito menos a um centímetro de distância, do lado de lá de um pedaço de tecido.
A mesma pureza indicava, claro, que
quaisquer especulações seriam uma idiotice. Sem mencionar que o braço mal se
mexia. Forçou a sua mente a se desviar do tecido e da mulher que estava por
trás e que ajudava a aquecer a cama tão bem. Fixou o olhar para baixo, para as
botas, no fogo baixo, até aquele calor delicioso no sangue se extinguir. Sem
distracção, o braço começou novamente a latejar como um tambor do inferno. Os
pensamentos processaram a rapidez com que a noite se transformara numa catástrofe.
Admirava a coragem de miss Kelmsleigh de se atrever a se encontrar com Dominó,
mas uma boa dose de irritação fervilhava na sua cabeça ao rever os
acontecimentos da noite. Se tivesse ficado quietinha em Londres, como qualquer
outra mulher, ele poderia ter conseguido executar o plano, e saber a verdade
acerca da conspiração do Gabinete do Material. Teria sido agradável poder
oferecer uma resolução ao irmão. Em vez disso, ia ser um inferno.
Em nenhum
momento deixou de reparar na presença dela ao seu lado. Provavelmente ela
também não se esqueceu de que ele estava ali. Um estado de alerta mútuo afectava
o ambiente do quarto. De nada servia reconhecer a sua existência, nem o quanto
os acontecimentos que a noite havia criado acentuava a intimidade forçada. Tampouco
serviria pensar nos beijos. Mas a presença dela, palpável, persistia em
trazê-los à sua mente, para repetido desconforto do corpo. Presumira que era
experiente no jogo quando começara a brincar com ela. Erro seu, como em várias
outras suposições da noite. A surpresa e o assombro dela haviam cativado
demais. Arrastando-o. Aparentemente, inocência conseguia ser muito apelativa.
Aqueles beijos o encantaram e não os esqueceria durante um longo tempo. Ela o
distraíra tanto que o verdadeiro Dominó já estava no meio do quarto quando um
dos dois percebeu que já não estavam a sós.
Tentou
recordar o que conseguia sobre o intruso, mas tudo se resumia a um borrão
indefinido de instinto e defesa. Via apenas o chapéu, escuro, baixo, com uma
aba larga. Suspeitava, mas não tinha certeza, de que o homem que comprava
cerveja quando ele questionara o estalajadeiro estava com um chapéu como
aquele. Se aquele homem fosse o Dominó, teria ouvido as indicações para o
quarto sem que ele mesmo tivesse que pedir ao estalajadeiro. Por mais que
tentasse se sentir irritado com ela, durante as horas em que ficaram à espera
não conseguiu. Os beijos tinham muito a ver com aquilo. Também simpatizava com
o desejo dela de limpar o nome do pai. Compreendia o amor filial e os
sacrifícios que podia requerer. Devia admitir que a sua imprudente missão era justificável,
mesmo tendo sido em vão. Horatio Kelmsleigh não gerara um filho que lutasse
pelo seu nome, por isso um filha havia assumido o papel.
Começou
a pensar naquilo que sabia acerca da família do homem, além do que descobrira
naquela noite sobre Audrianna. Sebastian vira o funeral de Kelmsleigh,
enterrado em solo não consagrado devido ao suicídio. Tinham ido poucas pessoas.
Um homem caído em desgraça tinha poucos amigos. Vira a viúva de vestido crepe
preto. Estava acompanhada de duas moças. Uma a agarrava, ficando praticamente
debaixo do braço da mãe. A outra estava a uma distância que já sugeria algum
isolamento emocional. Ele estava um pouco afastado do pequeno grupo e, além do
cabelo escuro, nada mais despertara a
sua
atenção nas mulheres. Fora espiar naquele dia por pensar que os outros
conspiradores podiam estar presentes, como amigos ou colegas. Os poucos homens
que se encontravam à volta da sepultura perceberam a sua atenção, não as mulheres. A
perda daquelas mulheres não se limitara a um pai e marido. Os meses que se
seguiram foram provavelmente difíceis ao nível financeiro e social para as
Kelmsleigh. Na verdade, ele não se detivera sobre as consequências que a
investigação e a morte pudessem ter para aquelas inocentes. Na verdade, não
pensara nem um pouco nelas. Agora, estava uma ao seu lado numa cama, num quarto
onde não deveriam estar juntos e sozinhos. Cruzou as pernas. Pensou se o juiz
de paz seria sensato ou mesquinho». In
Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.
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