«(…) Foi no percurso do Wilshire
Boulevard, a meio caminho entre a banca de advocacia em Beverly Hills, que
acabava de deixar para sempre, e o seu apartamento de três peças, em Brentwood,
que a compreensão absoluta do que havia acontecido atingiu Mike Barrett com
impacto total. Depois de todos aqueles anos de lutas, libertara-se. Lograra a
independência económica. Estava feito. Pelo canto do olho, podia ver a caixa de
papelão ao seu lado no assento. Uma hora antes, enchera-a de documentos e objectos
pessoais acumulados na escrivaninha de nogueira da firma, a escrivaninha que
lhe servira de mesa de trabalho durante dois anos de serviço. O conteúdo da
caixa, de certo modo, representava o saldo de uma carreira legal decepcionante,
frustrada e de segunda categoria, abrangendo uma década dos seus trinta e seis
anos de vida. A própria caixa, o simples acto de trazê-la, simbolizava uma vitória
que (na mais negra das noites insones e de ódio de si mesmo) tinha quase
perdido as esperanças de algum dia obter. Aquilo pedia comemoração, desfile
triunfal, um arco, ao menos uma grinalda. Pois nada disso lhe faltava, estavam
ali presentes, na imaginação e no coração. Mas mesmo assim, requeria algum
festejo exterior de independência ganha êxito conseguido. Mantendo firme o
volante do carro, com a mão livre desfez o nó da gravata e arrancou-a do pescoço.
A seguir, o colarinho da camisa. Desabotoou-o, abrindo bem as pontas. Sem gravata,
em plena hora de almoço de um dia de trabalho. Crime de lesa majestade no reino
da Ordem dos Advogados Americanos, a não ser que se seja a própria majestade.
Então lembrou-se da frase latina: Rex non potes peccare. Ao
rei tudo é permitido. Deus, que dia lindo. O sol, que beleza. A Cidade
dos Anjos, que beleza. O povo nas ruas, os seus vassalos, que beleza. Osborn
Enterprises, Inc., que beleza. Fay e Osborn, que beleza. Todos os amigos, que
bei... Não, talvez nem todos..., não Abe Zelkin. Abe, que beleza, sim, a
amizade de ambos, sim, isso também, excepto que possivelmente já não existiria
dentro de algumas horas. Sentiu-se culpado, e uma súbita mancha empanou o rosto
da alegria. Deu-se conta de que Westwood passava do lado de fora do seu Pontiac
descapotável, de capota baixa, e de que havia gente nas ruas, as calçadas estavam
apinhadas, mas não eram os seus súbditos, aplaudindo-o neste grande dia. Eram
Abe Zelkin, recriminando-o pela traição.
O
Honesto Abe. Que diabo, quem necessita de consciência incómoda quando tem um
amigo como o Honesto Abe? No entanto, por incrível que pareça, a verdade é que
fora Abe Zelkin quem plantara a semente que hoje frutificava, a cisão entre
Zelkin & Barrett, a união de Osborn & Barrett. Buscou na lembrança as
origens, reavivando-as aos poucos, para completar o sumário antes de pleitear o
seu caso perante Zelkin, à hora do almoço. Onde começara tudo? Na Universidade
de Harvard? Não. Lá tinha sido a amizade com Phil Sanford, ao ocuparem o mesmo
quarto. Não, em Harvard não, mas algum tempo depois, em Nova Iorque. Não
naquele escritório jurídico imenso, mais semelhante a uma fábrica, onde se
iniciara, porque não gostava daquela firma, ainda estava interessado em
defender os direitos humanos e não os direitos de propriedade, em retrospecto
um imaturo idealista, obtuso rústico forense, com uma mecha de cabelo em vez de
cérebro. Fora no lugar subsequente, aquela estufa para flores geradas pela
jurisprudência, o Instituto de Utilidade Pública, em Park Avenue, onde o seu
salário consistia em remendos de cotovelo para casacos puídos e citações de
Cardozo e Holmes sobre a alta finalidade da lei. O Instituto de Utilidade Pública,
fundação mantida por vinte grandes corporações industriais como lenitivo para
as suas consciências pesadas, onde cada causa decorria da superabundância da
União das Liberdades Civis Americanas e onde cada constituinte era o eterno
oprimido. Seis anos daquilo, de vida apertada, porque achava que estava a
corrigir alguns males e muitos erros, iludido na ideia de que eram os
verdadeiros inimigos, até aprender que não passavam de moinhos de vento
artificiais para o conservar entretido em montar um espectáculo de relações públicas
para os fundadores do Instituto. Seis anos para descobrir a identidade dos
verdadeiros inimigos, para descobrir que o seu trabalho era uma fraude, que a
benemerência era um embuste. Seis anos para descobrir a verdade sobre o modo de
ser manipulado pelos poderosos. Quando ele e Abe Zelkin finalmente descobriram,
retiraram-se da firma. Tinham-se demitido com um mês de intervalo entre si.
Barrett foi o primeiro. O seu desencanto com o Instituto atingiu o auge quando
a mãe morreu. Verificou que o novo medicamento administrado para a salvar
apressara-lhe realmente a morte. E, como possuía faro canino, não tardou em
tomar conhecimento de outras mortes prematuras de anemia a plástica, um efeito
secundário ocasionado por esse mesmo medicamento. Indignado, Barrett preparou o
esquema do caso legal, encontrou um reclamante adequado e finalmente apresentou
um memorando ao director-administrativo do Instituto. Nele acusava um dos laboratórios
farmacêuticos mais famosos da América, solicitando fundos para uma investigação
exaustiva e insistia, se porventura os resultados confirmassem as suas
suspeitas, em processar legalmente a fábrica de remédios ou marcar audiência
perante a Administração Federal de Comestíveis e Medicamentos. Estava certo de
que seria encorajado a prosseguir». In Irving Walace, Os sete Minutos, 1969,
Livros do Brasil, colecção Dois Mundos, 1988, ISBN 978-972-380-948-0.
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