Afonso
Henriques
Nascimento de
uma nação...
«(…) O grupo abranda e acaba por
parar, arreiam o estrado, procuram ver o que lhe atrai a atenção. O olhar de Afonso
concentra-se na escuridão à frente, para lá dos archotes dos homens de armas. Chama-os:
eh! Vós! Passai para trás de mim. Os homens de armas recuam com os archotes, passam
à rectaguarda do grupo, deixando alastrar a escuridão à frente no corredor. Ao fundo
desenha-se uma pequena luz, que se aproxima. Afonso Henriques esforça-se por se
erguer, o peso do corpo suportado pelas mãos sobre os braços do trono.
Os homens em volta acorrem a ajudá-lo,
logo parados por um gesto. Vêem-lhe a atenção fixa na pequena luz e ouvem a ordem
seca: afastai-vos. Todos! Todos se imobilizam, atraídos também pela pequena chama,
nem sequer vêem Afonso Henriques puxar uma das pernas à posição ideal, para
depois se elevar, sem um queixume, na sua grande estatura. Chama os homens com os
archotes atrás de si. Vós dois entregai os archotes e vinde aqui rápido. Só
então se apercebem dele em pé, escorreito como se em duas pernas sãs se sustivesse.
Acorrem os dois homens a dar-lhe os ombros, que ele toma com destreza, avançando
dois passos, e imobilizando-se, crescendo no porte enquanto se lhe anima a expressão
fixa na pequena chama.
Os nobres aproximam-se, olham o
mesmo que ele, menos esperançosos do que inquietados pela antecipação de uma nova
desilusão do seu Rei, após tantos anos de justiça incumprida por Roma. E rogam,
num silêncio feito de constrangimento, que aqueles momentos se prolonguem sem termo,
para que naquela chama crescente Afonso Henriques possa almejar longamente o que
aquele como os anteriores papas teimaram e teimam em recusar-lhe, ao Rei de Portugal,
e a todos os deste Reino.
É o final de um dia em que a chuva
caiu sem interrupção. O chão do terreiro frontal ao castelo de Guimarães está repleto
de largas poças de água e no alto as nuvens espessas deixam cair uma luz mortiça
que adensa a pedra das muralhas inexpugnáveis do castelo. No topo das enormes torres
quadrangulares de protecção às portas, os homens de armas observam inquietos o terreiro,
enquanto acendem archotes, preparando-se para a vigília nocturna. Subitamente,
um deles berra que Lá vem, lá vem! Os outros acorrem às ameias, o homem
aponta a estrada na boca do terreiro, é um cavaleiro que se aproxima a galope. Após
uma primeira hesitação reconhecem-no, levantam os archotes no ar, gritam com entusiasmo.
Senhor Henrique, Senhor Henrique! Henrique parece redobrar o galope, acena-lhes
entusiasmado. Pelo que lhe disseram e vê agora nas muralhas, já nasceu. E seja o
que espera e precisa ou não, é um novo pedaço do seu sangue. Mas que Deus lhe
dê o que precisa, porque é o que ele só quer e o que o Condado tem de ter, agora.
Tão certa e crua esta urgência como a água gelada que o envolve na explosão dos
charcos batidos-pelo galope desenfreado. Mal pára a montada e já salta para o
chão às portas do castelo, correm os homens da guarda a segurar-lhe o cavalo, ele
galga a escadaria e desaparece pela grande porta». In José Carlos Oliveira, D. Afonso
Henriques, O Primeiro Herói, 2016, Oficina do Livro, 2016, ISBN
978-989-741-419-0.
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