sábado, 18 de agosto de 2018

Contos e Fantasias Maria Amália Carvalho. «Porque não tornara ela a vê-lo? Tinha-lhe esquecido perguntar por ele, fora muito ingrata... E sem raciocinar aquele impulso estranho, parou…»

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«(…) São os passarinhos que andam a arranjar-se para se deitarem a dormir dentro dos seus ninhos, costumava dizer Tadeu. E ela ria-se virando a cabeça muito esperta para a cúpula do castanheiro, a ver se descobria como se faz a toillete nocturna dos passarinhos. Entrara, por fim, na sala. Havia grupos aqui e ali. Graves políticos que discutiam, financeiros de abdómen volumoso, matronas severas, rapazes elegantes, e no meio de tudo um bando de raparigas alegres, garridas, a chilrearem, a rirem e a cochicharem entre si, contentes da nova companheira que lhes chegava de longe, mas muito mais contentes ainda daquela atmosfera festiva e perfumada que as envolvia. No meio desse grupo encantador é que ela estava de pé. Um corpo deliciosamente modelado, de uma graça franzina e toda moderna. Tinha um vestido de foulard muito justo, muito elegante, e no meio dos rolos do seu crespo cabelo louro aninhava-se uma rosa vermelha, uma rosa cor de sangue.
Os olhos azuis, altivos e desdenhosamente fixos lembravam... Os olhos metálicos da sua mãe. Pois era aquela a sua Margarida?! Era. Não lhe restava a menor dúvida. Apesar de todas as diferenças tinha-a conhecido logo. A sua límpida testa de criança um pouco curta, indício de obstinação e de capricho; a sua boca pequenina, até alguma coisa dos seus gestos antigos, tudo trouxe ao coração de Tadeu uma lufada de saudades irresistível. Correu para ela como doudo, atravessou pelo meio de toda aquela gente, sem a menor timidez, sem o menor receio, sem notar sequer o espanto que a sua cómica aparição tinha excitado. As raparigas que faziam um círculo em torno de Margarida separaram-se numa súbita explosão de risadinhas, e ela, olhando muito fixa para Tadeu, exclamou rindo, rindo sem poder mais: Ih! Credo, primo Tadeu, que casaca!... Que figura!... Pelo amor de Deus vá já tirar essa casaca e venha depois! E ria, ria sem disfarce, enquanto ele com os braços quebrados, o rosto estúpido, a fisionomia espavorida, sentia dentro da sua pobre alma sem consolo esfacelar-se, desfazer-se, diluir-se em lágrimas de fel a última esperança da sua vida!
Três dias depois, Margarida, que se esquecera completamente daquele insignificante episódio em que Tadeu figurara, encontrou-o por acaso na Baixa, onde andava fazendo compras com a sua mãe, ao lado de Henrique, que para o distrair tinha ultimamente fingido precisar absolutamente da sua companhia. Margarida saía de uma loja e ia a saltar ligeira, elegante com a sua graça parisiense para dentro do coupé delicioso que, de propósito para a filha, o marquês tinha encomendado meses antes à casa Binder, e que dois finos cavalos ingleses esplendidamente ajaezados faziam voar pelas ruas da nossa pacata Lisboa. A vista de Tadeu despertou-lhe umas poucas de ideias que ainda não lhe tinham ocorrido. Lembrou se, por exemplo, de que não o vira mais, desde o instante em que ele se apresentara à frente dela com uns transportes ridículos e uma toillete horrorosa, na sala povoada pelas suas novas amigas, tão irónicas, tão cruelmente maliciosas...
Porque não tornara ela a vê-lo? Tinha-lhe esquecido perguntar por ele, fora muito ingrata... E sem raciocinar aquele impulso estranho, parou, esperou numa atitude de coqueterie irresistível que os dois amigos se aproximassem, visto que ambos caminhavam na direcção em que ela estava, e estendendo a Tadeu a sua mão esguia e fina, a sua mão de loura, enluvada de pelica cor de bronze, disse com uma expressão de finura e malícia intraduzível: então seu ingrato! Não me tem querido aparecer! Por onde tem andado? E ficou a olhar para ele, como quem espera alguma coisa, interrogadora, fascinante, sempre aristocrática. A marquesa, que já estava dentro do trem, murmurou levemente enfastiada: então, Margarida, ficamos aqui?... E Tadeu corando, balbuciando, resmoneava confusamente uma banal desculpa. Margarida saltou por fim o estribo que o criado conservava desdobrado, envolvendo num olhar magnético dos seus cintilantes olhos azuis, a bela e viril figura de Henrique Sousa, que presenciara mudo aquela cena inexplicável». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/JDACT