De Quando Morri Virado ao Mar
«(…) Foram muitos quilómetros
assim. Por várias vezes parei e decidi não dar mais um passo. Mas logo a
ardência me obrigava a levantar-me. Dos lados das arribas, nem uma sombra. O
sol queimava-as de frente agora, e continuava a verrumar-me a nuca. Perdi a
consciência. Andava como um autómato, já sem suor, com a pele sequíssima,
excepto as grossas gotas que se formavam nas fontes e corriam devagar,
viscosas, pelo rosto abaixo. Toda a tarde se passou assim. O sol principiava a
baixar quando atingi a povoação que devia ser a minha primeira etapa. Ali podia
alimentar-me, matar a sede, descansar numa sombra. Mas nada disto fiz.
Calcei-me como num sonho, gemendo com dores nos pés queimados, e meti-me à
estrada, que, em curvas dobradas, subia as arribas. Parei uma vez ainda, meio
perdido, olhando do alto o mar que se mudava numa cor escura. Continuei a
subir, e achei-me fora da estrada, sem saber como, a meter por entre pedras até
à beira da altíssima arriba a pique. O chão inclinava-se perigosamente, antes
de se furtar na vertical.
Foi ali que decidi passar a
noite. Deitei-me com os pés para o lado do mar e do desastre, enrolei-me na
manta e, a arder da febre do sol, fechei os olhos. Adormeci e sonhei. Quando
tornei a abrir os olhos, o sol roçava já o horizonte. Que faço eu aqui?,
perguntei em voz alta. E foi em movimentos de pavor que reuni as coisas e
voltei à estrada, fugindo. Enquanto andava, ia pensando que ali eu não era eu,
que o meu corpo ficara morto virado ao mar, no alto da arriba, e que o mundo
estava todo cheio de sombras e confusão. A noite apanhou-me na margem do rio,
com uma cidade diante que eu não reconhecia, como as torres ameaçadoras dos
pesadelos. Ainda hoje, tantos anos passados, me pergunto que vulto de mim terá
ficado disperso na brancura das areias ou imobilizado em pedra na arriba
cortada pelo vento. E sei que não há resposta.
A
Velha Senhora dos Canários
Se não fosse o ancestral respeito
que nos tolhe familiaridades diante dos grandes deste mundo, chamaríamos
marquesas àquelas varandas cobertas e envidraçadas que geralmente os
arquitectos instalam nas traseiras dos prédios, concluindo assim o perímetro
isolador das casas e facilitando, quantas vezes, a resolução dos problemas de
dormida da criada ou de um parente que veio da província. Mas as marquesas,
agora poucas e de pouca influência para fora dos círculos intangíveis da
sociedade, ainda transportam consigo o prestígio dos tempos em que marquês era
logo abaixo de duque, e este a seguir a rei. Por isso, chamamos àquelas
varandas marquises, que significa o mesmo, mas disfarçado de francês. Realmente
não seria correcto dizer, em casa de marquesa, que a marquesa estava mal
arrumada ou a precisar de espanador: põe-se no lugar da marquesa a marquise, e
é logo como quem fala doutra coisa. As palavras têm destas habilidades.
Mal me viria, porém, e mal
empregado o espaço desta página, se hoje me desse só para falar de tais coisas.
A marquise não é mais do que uma varanda protegida do sol e da chuva, e as
marquesas, se vivem, vivem nas salas da frente, sem nada terem que ver com
estes canários que, na marquise, começam justamente agora a dar sinal da sua
presença. Um deles tem a asa esquerda ligeiramente descaída, pesa-lhe, e
inclina a cabeça de modo a ver-me melhor. Olho-me miniaturizado no círculo
brilhante que de vez em quando se cobre, de baixo para cima, com uma rápida
pálpebra acinzentada. Meto um dedo entre os arames da gaiola e suporto as bicadas
débeis com que a ave recebe a invasão. Irá esvoaçar assustada quando a mão
inteira pairar lá dentro, como um dragão. Então o coração agita-se aterrorizado
e as asas atiram pancadas contra os arames. E se a mão se transforma em ninho e
envolve a ave como um casulo, o contacto dá-lhe calma, embora interrompida por
sobressaltos pouco convictos. O outro canário é mais novo. Prefere o poleiro
alto, ou o baloiço, e ali, de cabeça erguida, fazendo oscilar bruscamente as
penas longas da cauda, tem a vida toda à sua frente, e sabe-o. Se repito a manobra
de introduzir os dedos pelos arames, dispara uma bicada única, violenta, e
afasta-se ao longo do poleiro, com o ar de ter ganho a batalha logo na primeira
escaramuça». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura,
Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.
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