sábado, 18 de agosto de 2018

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «… ainda transportam consigo o prestígio dos tempos em que marquês era logo abaixo de duque, e este a seguir a rei. Por isso, chamamos àquelas varandas marquises…»

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De Quando Morri Virado ao Mar
«(…) Foram muitos quilómetros assim. Por várias vezes parei e decidi não dar mais um passo. Mas logo a ardência me obrigava a levantar-me. Dos lados das arribas, nem uma sombra. O sol queimava-as de frente agora, e continuava a verrumar-me a nuca. Perdi a consciência. Andava como um autómato, já sem suor, com a pele sequíssima, excepto as grossas gotas que se formavam nas fontes e corriam devagar, viscosas, pelo rosto abaixo. Toda a tarde se passou assim. O sol principiava a baixar quando atingi a povoação que devia ser a minha primeira etapa. Ali podia alimentar-me, matar a sede, descansar numa sombra. Mas nada disto fiz. Calcei-me como num sonho, gemendo com dores nos pés queimados, e meti-me à estrada, que, em curvas dobradas, subia as arribas. Parei uma vez ainda, meio perdido, olhando do alto o mar que se mudava numa cor escura. Continuei a subir, e achei-me fora da estrada, sem saber como, a meter por entre pedras até à beira da altíssima arriba a pique. O chão inclinava-se perigosamente, antes de se furtar na vertical.
Foi ali que decidi passar a noite. Deitei-me com os pés para o lado do mar e do desastre, enrolei-me na manta e, a arder da febre do sol, fechei os olhos. Adormeci e sonhei. Quando tornei a abrir os olhos, o sol roçava já o horizonte. Que faço eu aqui?, perguntei em voz alta. E foi em movimentos de pavor que reuni as coisas e voltei à estrada, fugindo. Enquanto andava, ia pensando que ali eu não era eu, que o meu corpo ficara morto virado ao mar, no alto da arriba, e que o mundo estava todo cheio de sombras e confusão. A noite apanhou-me na margem do rio, com uma cidade diante que eu não reconhecia, como as torres ameaçadoras dos pesadelos. Ainda hoje, tantos anos passados, me pergunto que vulto de mim terá ficado disperso na brancura das areias ou imobilizado em pedra na arriba cortada pelo vento. E sei que não há resposta.

A Velha Senhora dos Canários
Se não fosse o ancestral respeito que nos tolhe familiaridades diante dos grandes deste mundo, chamaríamos marquesas àquelas varandas cobertas e envidraçadas que geralmente os arquitectos instalam nas traseiras dos prédios, concluindo assim o perímetro isolador das casas e facilitando, quantas vezes, a resolução dos problemas de dormida da criada ou de um parente que veio da província. Mas as marquesas, agora poucas e de pouca influência para fora dos círculos intangíveis da sociedade, ainda transportam consigo o prestígio dos tempos em que marquês era logo abaixo de duque, e este a seguir a rei. Por isso, chamamos àquelas varandas marquises, que significa o mesmo, mas disfarçado de francês. Realmente não seria correcto dizer, em casa de marquesa, que a marquesa estava mal arrumada ou a precisar de espanador: põe-se no lugar da marquesa a marquise, e é logo como quem fala doutra coisa. As palavras têm destas habilidades.
Mal me viria, porém, e mal empregado o espaço desta página, se hoje me desse só para falar de tais coisas. A marquise não é mais do que uma varanda protegida do sol e da chuva, e as marquesas, se vivem, vivem nas salas da frente, sem nada terem que ver com estes canários que, na marquise, começam justamente agora a dar sinal da sua presença. Um deles tem a asa esquerda ligeiramente descaída, pesa-lhe, e inclina a cabeça de modo a ver-me melhor. Olho-me miniaturizado no círculo brilhante que de vez em quando se cobre, de baixo para cima, com uma rápida pálpebra acinzentada. Meto um dedo entre os arames da gaiola e suporto as bicadas débeis com que a ave recebe a invasão. Irá esvoaçar assustada quando a mão inteira pairar lá dentro, como um dragão. Então o coração agita-se aterrorizado e as asas atiram pancadas contra os arames. E se a mão se transforma em ninho e envolve a ave como um casulo, o contacto dá-lhe calma, embora interrompida por sobressaltos pouco convictos. O outro canário é mais novo. Prefere o poleiro alto, ou o baloiço, e ali, de cabeça erguida, fazendo oscilar bruscamente as penas longas da cauda, tem a vida toda à sua frente, e sabe-o. Se repito a manobra de introduzir os dedos pelos arames, dispara uma bicada única, violenta, e afasta-se ao longo do poleiro, com o ar de ter ganho a batalha logo na primeira escaramuça». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT